"Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas cousas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora. (...) Considerei o caso, e entendi que, se uma cousa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente." (Machado de Assis. “O segredo do Bonzo”. Papéis avulsos, 1882.)

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. | Foto: iStock

Não existe espetáculo sem espectador. É o que se lê no conto de Machado de Assis “O segredo do Bonzo”, que data de 1882. Distante no tempo, a conclusão guarda profunda ligação com os dias de hoje - e de modo globalizado. A necessidade de isolamento social imposta pela pandemia causada pelo Covid-19 impulsiona não só a criatividade para atrair olhares, assim como sentimentos universais nas redes sociais. Canais no youtube dos mais variados temas encontram milhares de olhares. Motivação para estudar, trollagens, dicas sobre jogos e histórias de terror estão no menu. Ver pessoas dormindo ou estudando é moda nas lives.

Ao mesmo tempo em que ser observado pelo outro é o "x" da questão e multiplicam-se as propostas e o número de interessados em espiar a vida alheia. A curiosidade, o desejo pelo íntimo se expandem no carrossel de fechaduras. E como se num ato de vaidade de exibicionismo, o observado se impusesse ao feito narrado em 1984, de George Orwell, abrindo sua janela para o mundo. A influenciadora Tainá Costa teve seu zono zelado por mais de 20 mil de seus 8 milhões de seguidores. Outro exemplo de audiência aconteceu com Isabella Maria de Freitas Faria, que tenta uma vaga como residente no exterior. Ela gosta de compartilhar suas horas de estudo. Sua live mais longa teve 12 horas. Essa trata-se de uma tendência mundial chamada Study With Me - Estude Comigo - e a ideia é incentivar o outro.

Paolla Zamarian Silva Dionísio, psicológa: "Vemos exibições extremas de pessoas compartilhando quase 24 horas do seu cotidiano"
Paolla Zamarian Silva Dionísio, psicológa: "Vemos exibições extremas de pessoas compartilhando quase 24 horas do seu cotidiano" | Foto: Divulgação

Atenta ao ambiente e ao comportamento do homem, a psicóloga Paolla Zamariam Brandt Silva Dionísio, considera a abordagem relevante e que as ferramentas da internet são importantes para diminuirmos o impacto e os prejuízos do distanciamento. De seu ponto de vista, precisamos naturalmente de contato humano, mas o momento exige ponderação, pois há excessos e com as emoções abaladas, as pessoas se tornam iscas fáceis de conteúdos inúteis. "Fazer uso dessas ferramentas para continuarmos estudando, trabalhando e nos conectando com os familiares e amigos é essencial", diz. "

Mas também vemos vemos exibições extremas de pessoas compartilhando quase que 24 horas do seu cotidiano prendendo a audiência em lives intermináveis com a promessa de que vão conseguir ajudar quem os acompanha a se conectar com mais pessoas", expõe.

"Fomos bombardeados por várias notícias, vivemos com as incertezas do que pode acontecer com a gente, temos a falta de comunicação em casa, o que gera constantes brigas e estresses e ainda somos privados de estarmos com os amigos. Se não for filtrado, tudo isso pode causar uma queda gigantesca na nossa saúde mental", alerta. "A internet pode ser uma boa aliada, mas um grande inimigo também, precisamos saber que a internet causa vício".

Um universo a explorar a sensibilidade alheia

Tatiane Atsumi Hassegawa "O mais estranho são as lives "Acho que o mais estranho pra mim são lives de ASMR , que significa gerar sensações  um estimulo externo, através dos vídeos, a partir de um sons e imagens que podem durar 60 minutos."
Tatiane Atsumi Hassegawa "O mais estranho são as lives "Acho que o mais estranho pra mim são lives de ASMR , que significa gerar sensações um estimulo externo, através dos vídeos, a partir de um sons e imagens que podem durar 60 minutos." | Foto: Roberto Custódio

A vendedora Tatiane Atsumi Hassegawa, de Londrina, conta que acompanha lives de artistas e praticantes de alguns jogos que aprecia. "Eu gosto de ver as técnicas usadas e as gameplays, ao mesmo tempo penso que a vida mostrada em redes sociais geralmente é muito produzida, então eu geralmente não acredito muito."

A interação de Hassegawa guarda sua linha no tempo. "Desde o Blogspot, onde algumas pessoas postavam sobre o dia a dia, depois foi o Snapchat com os Stories, o Periscope que não ficou muito conhecido no Brasil, mas no exterior foi bem difundido e agora com o Instagram e a Twitch". Nas redes, a jovem diverte-se sem perder a capacidade de criticar. "Existem vários usuários interessantes, já vi gente fazendo live de marcenaria, andando de moto, pintando, fazendo arte digital, e a maior parte das lives que é de jogadores de vários jogos online.

"Acho que o mais estranho pra mim são lives de ASMR", diz. A sigla em inglês para Autonomous Sensory Meridian Response significa uma resposta meridional sensorial autônoma, ou seja, uma sensação agradável gerada no corpo por um estímulo externo, que nos vídeos de ASMR costuma ser sonoro ou visual e podem chegar a 60 minutos. "São pessoas estourando um pedaço de plástico bolha, fazendo uma refeição, falando baixinho ou cortando barras de sabonetes coloridos. Acho muito estranho."

Hoje, estima-se que, apenas no YouTube, milhões de pessoas visualizem produções de ASMR todos os dias em busca de relaxamento, aumento da concentração ou de uma noite de sono melhor.

Confira o canal Study Whit Me, no Youtube, um dos mais acessados em tempo de pandemia para compartilhamento de estudos, aqui

Confira aqui o canal Veiled, utilizado para relaxar durante a pandemia propiciando ruídos e sussuros