Dos ''Contos de Belkin'', do fundador Aleksander Pushkin (1799-1837), ao ''Romance com Cocaína'', assinado por M. Agueiev, pseudônimo provável de Mark Lazarevitch Levi (1898-1973), passando por ''A Dócil'' e ''O Sonho de um Homem Ridículo'', narrativas de Fiodor Dostoievski (1821-1881), a primeira delas lançada em duas novas traduções, a literatura russa continua a avançar nas estantes das livrarias brasileiras.
As razões para esse interesse dos leitores e das editoras do País, na opinião da tradutora Klara Gourianova, não são propriamente novas, vêm do tempo em que o mundo comunista era fechado e ''um enigma'', tanto para os que defendiam a sua ideologia quanto pelos que a atacavam - mas teriam se fortalecido com o aumento do intercâmbio entre os países a partir da Perestroika, no fim dos anos 1980. ''Além disso, há muitas semelhanças entre os dois países: geográficas, demográficas e econômicas - Rússia e Brasil são ricos e pobres, ao mesmo tempo.''
Para Klara, que verteu para o português as obras de Pushkin e Agueiev (e que diz ter a vontade de traduzir Clarice Lispector e Zélia Gattai para o russo), não vale a pena buscar uma relação direta entre eles, além da tradição literária e da língua russa, ainda que seja possível encontrar, por exemplo, uma citação de Pushkin no romance de Agueiev - ''Na Rússia, todos conhecem os clássicos; de Pushkin, todo mundo sabe alguma coisa de cor.'' Os motivos: ''Primeiro, porque é ensinado na escola; segundo, porque é muito bom.'' Mas há uma ligação que ela acaba entregando: as narrativas de Dostoievski foram traduzidas por seu sobrinho, Vadim Nikitim.
Pushkin, romanticamente, morreu num duelo, resultado de sua tentativa de resgatar a honra um tanto quanto maltratada pelo comportamento de sua mulher. Sete anos antes disso, em 1830, escreveu os ''Contos de Belkin'' (Nova Alexandria, 120 págs., R$ 26), numa propriedade rural vizinha à de seu pai, quando ele vivia em quarentena devido a uma epidemia de cólera asiática, como informa a edição brasileira da reunião de contos. Belkin, no caso, é um personagem fictício, apresentado num capítulo à parte, intitulado ''Do Editor'', cuja biografia, breve, é apresentada na forma de uma carta de um suposto amigo.
Belkin conta cinco histórias, todas com um objetivo moral evidente, construídos, no entanto, de forma que seus desfechos não sejam óbvios ainda hoje, quanto mais na primeira metade do século 19. O primeiro deles, ''O Tiro'', narra a amizade e a desconfiança de Belkin, aquartelado numa cidade cujo nome não é informado, por Silvio, um homem misterioso, que, ao contrário dos outros, evita o assunto duelo - justamente porque passou por uma história sensacional.
Pushkin, autor do famoso romance em versos ''Ievgueni Onieguin'', não traduzido para o português, marcou, com sua prosa, ''o início da grande literatura russa moderna'', como escreveu o Boris Schnaiderman no prefácio de ''A Dama de Espadas'' (Ed. 34), volume que traz novelas, contos e poemas de Pushkin (inclusive alguns que constam de ''Contos de Belkin'') traduzidos por ele e por Nelson Ascher.
É raro que tenhamos duas traduções de Dostoievski para cotejar. Agora acontece isso com as versões diferentes de uma notícia de jornal transformada pelo artista em narrativa de ficção. ''Uma Criatura Dócil'' é traduzida por Fátima Bianchi (Cosac & Naify, 112 págs., R$ 22) e também por Vadim Nikitin, com o título singelo de ''A Dócil'', em livro que inclui outro relato, ''O Sonho de um Homem Ridículo'', ambos sob o título geral ''Duas Narrativas Fantásticas'' (Editora 34, 128 págs., R$ 23).
Tanto ''A Dócil'' (ou ''A Criatura Dócil'', segundo opção do tradutor) como ''O Sonho de um Homem Ridículo'' foram publicadas na revista mensal de propriedade do próprio Dostoievski, chamada de ''Diário de um Escritor''. Ele manteve essa publicação entre 1876 e 1881, ano de sua morte. Tinha entusiasmo por esse trabalho de jornalista, madrugando na gráfica, acompanhando a feitura das provas e distribuindo a revista.
Claro, era um jornalismo de tipo especial, literário, mas, como todo jornalismo, bebia avidamente na realidade. Dostoievski impressionou-se com o caso de uma costureira, Maria Borissovna, notícia que apareceu no jornal ''O Novo Tempo''. Maria fora a Moscou tentar a vida e, caída na miséria, atirou-se de um sexto andar, agarrada a uma estatueta da Virgem. Dostoievski ficou obcecado pela notícia e meses depois aparecia ''A Dócil''.
Em ''O Sonho de um Homem Ridículo'', o fantástico se realiza de outra forma. Um homem, à beira do suicídio, adormece em uma poltrona, diante do seu revólver carregado. Em sonhos, vê-se conduzido a um mundo de utopia, onde as pessoas são felizes porque não foram contaminadas pela autoconsciência. Nem sabem de si, nem se preocupam consigo mesmas, por isso vivem tranquilamente. Hamlet dizia que consciência faz de todos nós uns covardes. Dostoievski acrescentaria que a consciência excessiva nos atormenta e nos conduz à destruição. Por isso essas duas narrativas, ''A Dócil'' e ''O Sonho de um Homem Ridículo'', são exemplares do que o tradutor e especialista em literatura russa Boris Schnaiderman chamou de ''introspecção verrumante''. Ou seja, o pensador de si mesmo, cuja consciência age com uma verruma a atormentar-lhe o cérebro. Inúltil dizer, o protótipo desse tipo de narrativa está no próprio Dostoievski, em sua obra-prima ''Memórias do Subsolo''.
Hoje, excepcionalmente, deixamos de publicar a coluna ''Leitura'', de Marcos Losnak.