Coube à poesia do judeu Óssip Mandelstam, os versos trágicos, que lhe custaram a vida em um campo de concentração, em Vladivostok, na Sibéria. Seus versos dizem que os crânios humanos costumam sumir nas pilhas, salvaguardando que um bom livro e os jogos infantis ressuscitam qualquer poeta, que continuará proclamando que o sol brilha.
Nessa esperança é que se agarra obras como o novo livro do jornalista e escritor paulista, Lucius de Mello, ''A Travessia da Terra Vermelho - Uma Saga dos Refugiados Judeus no Brasil'' (Editora Objetiva).
O livro está em fase de produção final e deverá ser lançado, primeiramente, em Rolândia, cidade que é o cenário de quatro anos de pesquisa em que o autor para reconstruir alguns fatos ouviu relatos também no Rio de Janeiro, Curitiba, Maringá, Campo Mourão e Londrina.
Mello ainda visitou judeus que se refugiaram no Brasil e que voltaram para a Alemanha. O autor estreou com o livro de biografia e memória ''Eny e o Grande Bordel Brasileiro'' (Editora Objetiva, 2002), que ficou três meses na lista dos mais vendidos das revistas Veja, Época e Jornal O Globo.
O livro rendeu ao escritor a indicação como finalista do Prêmio Jabuti, a maior premiação brasileira de literatura, vendendo quase 40 mil cópias - o que chama a atenção no mercado editorial nacional ainda mais por se tratar de um escritor estreante.
''Eny e o Grande Bordel Brasileiro'' deve ser adaptado para o cinema pela produtora Casablanca, que está em fase de captação de recursos e posterior escolha do roteirista e diretor da produção.
Mello chegou a Rolândia em 2003 para começar o trabalho de pesquisa do novo livro.
Formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Artes Cênicas pelo Teatro Guaíra, tendo sido aluno do ator curitibano Luís Mello, o autor lembra que não conhecia a cidade norte-paranaense, onde encontrou o caminho das histórias que, numa alusão metafórica do poema de Óssip, desapareceram como em pilhas de crânios, mas que voltam a brilhar com o depoimento de familiares, refugiados e historiadores.
''Fiz um mergulho na personalidade de cada imigrante refugiado. A idéia de escrever o livro surgiu numa conversa com a ex-editora da Objetiva, Valéria Motta, uma das colaboradores dos autores da novela ''Bicho do Mato'', exibida pela TV Record. Ela disse que sabia de uma história que alguns já tinham pensando em fazer um filme, mas tiveram dificuldade de realizar a produção porque não existia nada escrito. Ninguém reconstituiu os diálogos desses personagens, como fiz no livro, o que reflete a personalidade dessas pessoas'', destaca Mello que - pelo trabalho de pesquisa - recebeu o convite para integrar o Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo (LEER - USP).
Os judeus começaram a chegar à região entre 1954 e 1935, convivendo com os alemãos, que colonizaram Rolândia. ''No livro temos fotos de festas que os alemães faziam em homenagem a Hitler. É uma Rolândia que poucos conhecem'', conta o autor, que deverá lançar o livro também no Off Flip, evento paralelo à Festa Literária Internacional de Parati, em julho.
Sob os escombros dessa saga, formado por pilhas e pilhas de relatos, documentos e fotos não-oficiais, Mello encontrou a história de uma imigrante em Rolândia, que se tornou amiga de Candido Portinari, com quem trocou diversas cartas.
Cartas também são as vozes do passado, que o autor reconstrói de maneira romanceada. Às vezes, ele troca o nome dos personagens - sem mexer em suas histórias, preservando os envolvidos em algumas situações que são segredos de família. Como no depoimento de uma física refugiada, que seria prima do físico Rudolf Ladenburg, que integrou a equipe de Albert Einstein, em Princeton (EUA).
''A imigrante teria vindo a Rolândia visitar uma irmã, em 1937, e acabou ficando ao se apaixonar por um rapaz. Talvez se não tivesse ficado também teria integrado a equipe de Einstein. Porém, durante muito tempo, trocou correspondências com o primo, ficando sabendo das notícias fresquinhas do físico, que formulou a Teoria da Relatividade'', conclui Mello.