Usada há até pouco tempo apenas por ativistas LGBTQIA+ a linguagem neutra começa a ganhar mais visibilidade. Uma postagem feita recentemente no perfil das redes sociais do Museu da Língua Portuguesa voltou a levantar debates sobre o tema. Apesar de ser inexistente nas normas cultas oficiais o termo “todes” foi utilizado pela instituição para fazer referência a pessoas não binárias, que não se sentem identificadas exclusivamente nem com o gênero masculino e nem com o feminino. Enquanto o assunto divide opiniões, a variação linguística criada para promover a inclusão social já é usada na literatura, em novelas e séries de TV.

Em meio à polêmica gerada pelo uso do pronome neutro, o Museu da Língua Portuguesa se justificou sobre a publicação que dizia: "Nesta nova fase do MLP, a vírgula - uma pausa ligeira, respiro - representa o recomeço de um espaço aberto à reflexão, inclusão e um chamamento para todas, todos e todes os falantes, ou não, do nosso idioma: venham, voltamos". Em nota divulgada à imprensa, a direção do museu afirmou que o espaço está “aberto a debater todas as questões relacionadas à língua portuguesa, incluindo a linguagem neutra, cuja discussão toca aspectos importantes sobre cidadania, inclusão e diversidade ", afirmava a nota emitida à imprensa.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Na TV brasileira, o primeiro pronome neutro foi usado na novela “Pega Pega”, exibida pela Rede Globo em 2017 e reexibida atualmente por conta da pandemia. Em um dos capítulos do folhetim, a personagem Arlete vivida pela atriz Elizabeth Savalla questiona um grupo de drag queens que convivem com o personagem do ator Marcos com a pergunta: “Olha aqui, vocês são amigues dele?”. Autora da novela, a escritora Cláudia Souto já adiantou em entrevista que voltará a fazer uso da linguagem neutra em “Cara e Coragem”, novo folhetim que está escrevendo e que deve ser exibido em 2022.

A variação linguística também está presente em séries populares lançadas em plataformas de streaming. É o caso do seriado brasileiro “Todxs Nós”, produzido pelo canal HBO. No catálogo da Netflix, os termos neutros são encontrados no seriado “Love Goes”, que mostra as gravações do terceiro álbum de Sam Smith, cantor britânico que se identifica como pessoa não binária. Outro exemplo é a série “Sex Education”, sucesso da Netflix cuja terceira temporada estreou no mês passado. Na produção, a personagem Cal se apresenta para o colégio dizendo que seu pronome não é “ela”, mas “ile”.

A literatura também traz exemplos recentes, como no livro “Cool for the Summer: Um Verão Inesquecível”, um romance juvenil lançado pela Editora Globo no qual o personagem Taylor se identifica como pessoa não binária. Ou ainda no livro “Os Garotos do Cemitério", da editora Record, que narra a história de Yadriel, um jovem que enfrenta preconceito devido a sua identidade transgênero.

Prós e contras

Diversos políticos já se posicionaram contrários ao uso da linguagem neutra, incluindo o presidente Jair Bolsonaro que considera a variação linguística um “aparelhamento na educação”. No Câmara dos Deputados, o deputado federal Junio Amaral, do PSL de Minas Gerais, apresentou um projeto de lei que visa a proibição do uso da variação linguística por instituições de ensino, vestibulares e concursos públicos alegando que linguagem não binária seria um “enviesamento político-ideológico”. Vários deputados estaduais também apresentaram projetos de lei semelhantes em seus respectivos estados.

Já os ativistas que atuam em causas LGBTQIA+ defendem a mudança linguística. “É natural que a língua mude ao longo do tempo. Algumas palavras são introduzidas no nosso vocabulário e as pessoas passam a usá-las sem questionarem o que significam, como é o caso de watsapp, fake news, podcast. Não entendo porque não querem aceitar uma mudança criada para garantir a inclusão social de pessoas que não se sentem representadas pela atual linguagem”, argumenta Vinícius Bueno, integram do Fórum LGBT de Londrina.

Professor Frederico Fernandes: "O que define a língua é na verdade o seu uso, do contrário a gente estaria até hoje falando vossa mercê, em vez de você”
Professor Frederico Fernandes: "O que define a língua é na verdade o seu uso, do contrário a gente estaria até hoje falando vossa mercê, em vez de você” | Foto: Acervo pessoal

Em resposta a deputados que apresentaram projetos de lei contrários à utilização da linguagem neutra alegando as medidas restritivas visam defesa da língua portuguesa, o professor Frederico Garcia Fernandes, do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual explica que a língua portuguesa é algo dinâmico, ela se transforma ao longo do tempo. "O que define a língua é na verdade o seu uso, do contrário a gente estaria até hoje falando vossa mercê, em vez de você”, exemplifica.

O docente enfatiza ainda que todos os indivíduos devem se sentir representados na língua portuguesa. "A língua ela pertence a todos. É uma forma de comunicação dos seres humanos de uma maneira geral. Então a língua tem que nos representar ou então ela provocará a exclusão social. É importante que a linguagem respeite orientações sexuais diversas, fazendo a utilização não apenas de termos binários masculinos e femininos, mas também de termos com o gênero neutro”, ressalta.

Fernandes acredita que a inclusão de pronomes neutros na língua portuguesa não seja apenas uma moda passageira. “Não é modinha. A gente vê que a questão das demandas dos movimentos LGBTQIA+ estão colocadas no centro da discussão social. Biologicamente a gente pode pensar essa questão do gênero apenas como masculino e feminino, mas a gente tem que lembrar que a sexualidade também é uma construção social e uma construção histórica. O fato de ter nascido homem ou mulher não significa que a pessoa tenha essa mesma orientação sexual pro resto da sua vida. O sujeito tem que ter sua condição respeitada, inclusive na forma da linguagem”, conclui.