Falta alguma coisa. Basta olhar para as palavras, abrir os olhos como um indivíduo na madrugada. Falta algo próximo, todo mundo utiliza todo santo dia. Nas ruas calmas ou agitadas, nos diálogos do bar, na missa do domingo, no calor do lar. Basta olhar para abstrair o branco, a coisa que falta num suspiro.

Realmente falta alguma coisa. Se você olhar com atenção perceberá que no parágrafo anterior falta a letra "e". Trata-se de um antigo recurso literário chamado lipograma. A regra do jogo é simples: suprimir uma ou mais letras do alfabeto do texto. Os lipogramas mais complexos em línguas latinas suprimem alguma vogal.

O escritor francês Georges Perec (1936 – 1982) entrou de cabeça nesse jogo e criou um romance de quase 300 páginas sem utilizar uma única vez letra "e". Na língua francesa a letra "e" representa a vogal mais presente nas palavras, algo como a letra "a" na língua portuguesa. Um desafio monumental.

A obra de Georges Perec está repleta de desafios que integram jogos verbais e jogos de linguagem. Para se ter uma ideia, o maior palíndromo (texto que também pode ser lido de trás para frente) da língua francesa é de sua autoria. Um palíndromo de 1.247 palavras.

O escritor integrou o grupo OuLiPo (oficina de literatura potencial) criado em 1960 por Raymond Queneau e Italo Calvino em atividade em Paris até os dias de hoje. O grupo defendia a ideia de que algumas regras formais (restrições) da literatura poderiam ser um estimulo à criação literária. A obra mais emblemática dessa prática é "Exercícios de Estilo", de 1949, onde Raymond Queneau conta a mesma história de 99 maneiras diferentes.

Lançado originalmente em 1969, o romance de Perec ("La Disparition"), sem a letra "e" tronou-se uma clássico da literatura experimental. Sua primeira edição brasileira, "O Sumiço", acaba de chegar às livrarias lançado pela editora Autêntica. O desafio da versão para a língua portuguesa ficou a cargo do professor mineiro Zéfere (pseudônimo de José Roberto Andrade Féres). Seguindo a supressão da letra "e", desenvolveu a tradução como tese de doutorado num trabalho que levou cinco anos.

"O Sumiço" traz uma mirabolante história repleta de reviravoltas entre o trágico e o cômico. Tudo começa quando um sujeito chamado Antoin Vagol tem a sensação que alguma coisa sumiu, desapareceu. Cutucando aqui, investigando ali, ele quase descobre que a coisa que desapareceu é justamente a letra "e". Quase porque, quando está próximo da descoberta, ele também misteriosamente desaparece. E assim, todos os personagens que estão próximos de descobrir o desaparecimento da letra "e", simplesmente morrem ou desaparecem.

A grande sacada de George Perec em "O Sumiço" está em transformar a letra "e" em personagem do romance. A letra que não aparece uma única vez é justamente a personagem principal. Toda a trama se baseia do argumento de que se algum personagem descobrir que o "e"não está no livro, o livro perde o sentido. O romance acaba. A letra "e" está presente em todas as ações e acontecimento sem se fazer presente. Sob o manto da invisibilidade o "e" determina os acontecimentos e a condução narrativa.

Georges Perec nasceu em Paris, em 1936, filho único de um casal de judeus poloneses que morreram na Segunda Guerra Mundial. Ele no campo de batalha, ela num campo de concentração. Apesar de ter estudado sociologia e história na Sorbonne, foi na literatura que encontrou seu lugar. Para sobreviver foi radialista, diretor de documentários e criador de palavras cruzadas. Passou a se dedicar à literatura apenas nos anos de 1970. Faleceu prematuramente em 1982, com 46 anos, deixando várias obras inacabadas.

Entre sua obras publicadas no Brasil destacam-se "A Vida Modo de Usar" (Cia. Das Letras, 1991), "A Arte e a Maneira de Abordar Seu Chefe Para Pedir um Aumento (Cia. Das Letras, 2010) e "As Coisas" (Companhia, 2012). Os três romances possuem estruturas instigantes, experimentais, característica básica da literatura de Perec. No final de 2015 editora GG Brasil lançou "Tentativa de Esgotamento de Um Local Parisiense". O livro é o resultado dos três dias em que o escritor permaneceu sentado numa mesa de bar olhando atentamente para a praça em frente. O texto descreve tudo o que viu, os acontecimentos mais cotidianos e insignificantes envolvendo pessoas, animais, carros, árvores e o tempo.

Para se ter uma ideia de como os franceses levam a sério as maluquices de Perec, basta dizer que na praça parisiense retratada no romance (a Praça Saint-Sulpice) foi instalada uma placa de bronze em homenagem ao escritor. Seu nome está gafado da seguinte forma: G_org_s P_r_c. Numa alusão a "O Sumiço", a letra "e" foi devidamente suprimida. Os desavisados acreditam tratar-se de um misterioso desaparecimento de letras.

Ia sucumbindo. A cada dia ficava uns cinco quilos mais magro. À vista, sua mão não passava dum coto agora. Sua cara rubicunda, rotunda, bocuda, inchada, inflamada, oscilava por cima dos ombros raquíticos. Mas ainda comprimia sua caixa torácica, pilão insidioso, jugo torturador, o inumano abraço duma jibóia constritora, píton a torturá-lo. Dava para ouvir uma articulação ou outra partindo, um osso trincando. Antoin não podia mais falar. Não tardou a ficar cônscio do óbvio: só sairia daquilo morto. Mal podiam ajudá-lo. Mal podiam supor o mal a trucidá-lo. Mal podiam suavizar o fim, sacristão algum podia dar absolvição à sua falta. Via um urubu voando alto, planando no páramo. A volta da sua cama, vários animais acumulados – gordos ratos obscuros, ratazanas, ratos-do-campo, camundongos, sapos, baratas, salamandras – formando um bando, tocaiando o corpo rígido, a carniça. Um falcão afundaria o bico na sua carcaça. Um chacal viria dos confins do Saara. Sua atração por coisas mórbidas o intrigava ainda mais. Ansiava por avistar ali um sinal mais nítido, um fluxo mais conciliador, ou algo como um fio condutor. Não o óbvio (contudo, toda hora havia o risco dum óbito), não a danação (contudo, toda hora corria o risco duma danação), mas, acima do mais, uma omissão: um não, um vão, uma falta. (Fragmento de "O Sumiço", de Georges Perec)



Serviço:
"O Sumiço"
Autor : Georges Perec
Editora: Autêntica
Tradução: Zéfere
Páginas: 256
Quanto: R$ 53