''Não tenho poder nem armas para contrapor à nossa época e ao mundo senão as da escritura. Cortam-se os países em pedaços para depois os costurarem de outra forma, violam-se os acordos, reduzem-se à escravidão gerações inteiras para se edificarem as pirâmides das novas quimeras, vão para os ares as pontes que uniam os espíritos... Por que resisto apesar de tudo? O que me infunde coragem, em que confio? A única coisa que me dá força é a fé na existência invulnerável e eterna de um espírito frio, límpido, autêntico, inflexível, que não pode ser negado impunemente, não se deixa falsificar, e sobreviverá demonstrando ser mais forte que todo o resto.''
Essas palavras foram proferidas pelo escritor húngaro Sándor Márai (1900 - 1989) quando o exército alemão invadiu Budapeste durante a Segunda Guerra Mundial. Num momento em que a maioria dos intelectuais abandonou o país, optou em viver recluso na cidade escrevendo romances. Quando, em seguida, a cidade foi ocupada pelo exército russo, também recusou o exílio.
Em ''Libertação'', romance que a editora Companhia das Letras coloca essa semana nas livrarias, Sándor Márai retrata esse período histórico através da ótica de uma garota que perambula por uma Budapeste repleta de sofrimento e privações. Trombando com a morta todos os dias, a garota entra em contato com algo que até então não conhecia. Violência e morte.
O empenho do autor está em desenhar as sensações da menina diante de algo desconhecido. Algo que, de um momento para outro, se materializa na forma de uma violência incompreensível. O foco não está nos mecanismos da guerra, mas em suas consequências na alma humana.
''Libertação'' levanta um argumento constrangedor: os atos de violência e humilhação só acontecem porque há o consentimento daqueles que, mesmo não participando do ato em si, sabem que ele está acontecendo e fecham os olhos. Os responsáveis pelas pequenas e grandes atrocidades seriam tanto aquele que aperta o gatilho como aquele que assiste tudo sub o mando da indiferença ou mesmo com a intenção de salvar os próprios interesses. A lendária oculta face na noite.
Em ''Libertação'', Sándor Márai, por exemplo, realiza uma descrição de um estupro onde não há a apresentação física da violência. O registro aparece apenas como uma tatuagem na pele da mente. Um tipo de tatuagem invisível aos outros, mas que se afirma como uma espécie de fosso negro onde aquele que está fora não pode entrar e aquele que está dentro não pode sair.
Autor de mais de 40 obras, Sándor Márai é mais lembrado como autor de ''As Brasas'' (Cia. Das Letras, 1999), romance que evidencia uma das principais características de sua literatura: a flexibilidade da ética, tanto nas relações pessoais quanto nas relações de poder. Para o leitor brasileiro, seu romance mais curioso é ''Veredicto de Canudos'' (Cia. Das Letras, 2002) onde o escritor utiliza ''Os Sertões'', clássico de Euclides da Cunha, como referência simbólica.

Serviço
- Libertação
Autor - Sándor Márai
Editora - Companhia das Letras
Tradução - Paulo Schiller
Quanto - R$ 36 (150 págs.)


''Eles entravam nas casas, reviravam com baionetas as gavetas dos armários, assassinavam diante do portão quem por acaso os perturbasse. A cidade sabia que não havia escapatória, teria de passar pelo cerco. Ela sabia; e não só os militares se preparavam para o cerco. Um milhão e meio de pessoas, numa impotência incomum, aceitavam a sorte. As pessoas assavam e cozinhavam para o período do cerco como se fizessem os preparativos para uma excursão, embrulhavam os andrajos e os valores, se acomodavam nos porões, procuravam com cuidado e avidez ocupar um canto mais confortável nos esconderijos. Levavam para debaixo da terra camas de ferro, camas de armar, como animais em suas covas elas se encolhiam sobre as trouxas nos leitos improvisados, com crianças, penicos, guardavam água em todos os recessos imagináveis e impossíveis, esperavam pelo cerco. Quase o desejavam. Temiam-no, porém ao mesmo tempo o esperavam e desejavam, porque ele tinha amadurecido, chegara, se transformara em realidade, e o recém-nascido monstruoso, o destino transformado em realidade, o cerco, teria que ser expulso em meio a dor e sangue''.
(Fragmento de ''Libertação'' de Sándor Márai)