São Paulo - A polêmica mais recente envolvendo a Lei Rouanet começou com uma piada. E a brincadeira sobre uma tatuagem íntima de Anitta acabou desencadeando uma crise entre os cantores sertanejos. O episódio apontou para a complexidade do financiamento público da cultura - e mostrou que aquela história de que sertanejos não precisam de dinheiro vindo do poder público não era bem assim.

Mas afinal, por que gastar dinheiro público com cultura? E por que cultura é um tema que parece ser tão sensível para o governo Bolsonaro e para seus apoiadores?

Agora o financiamento público da cultura volta à pauta do Congresso Nacional, que nos próximos dias deve votar o veto do presidente Jair Bolsonaro (PL) à Lei Paulo Gustavo. Mais para a frente, votará o veto à Lei Aldir Blanc. Entre os críticos da Paulo Gustavo, há os que evocam o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Outros falam que há maiores prioridades, já que somos um país tão cheio de urgências.

Mas se a lei é tão polêmica, por que ela foi aprovada com unanimidade no Senado, tendo conquistado o sim de nomes de governistas como Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Marcos Rogério (DEM-RO)?

E por que programas de incentivo a outros setores, como os de indústria e serviços, por exemplo, não levantam tanta polêmica?

CRISE NO SETOR

O setor cultural brasileiro passa por uma crise já há algum tempo. E se outros setores da economia foram tão ou mais atingidos pela pandemia e pela crise econômica, poucas áreas parecem deixar os ânimos tão à flor da pele quanto a cultura.

Fora daqui, superproduções de heróis de collant, feitas no epicentro do capitalismo mundial, não dispensam dinheiro público. Para muitos, pode parecer óbvio, mas financiamento público não é coisa só de filmes latino-americanos ou experimentais. "Vingadores: Ultimato", por exemplo, foi uma das maiores bilheterias da história e custou US$ 350 milhões, de acordo com o New York Times. Esse blockbuster da Marvel recebeu apoio financeiro dos governos da Nova Zelândia, do Reino Unido, das províncias de Ontário e Québec no Canadá e do estado da Geórgia nos Estados Unidos.

Não é só no cinema, mas também nas mais diversas manifestações culturais, do museu do Louvre a festivais de k-pop na Coreia do Sul.

No Brasil, um dos principais e mais bem-sucedidos mecanismos de financiamento público da cultura ganhou fama de vilão no imaginário de muitos.

"A Rouanet vira a Geni. Sempre jogam pedra na Rouanet", diz a advogada Aline Akemi Freitas, especializada no setor cultural. "É muito difícil ter uma concentração expressiva no nome de um artista. Você tem nas regras de uso da Rouanet essa limitação, justamente para evitar essas concentrações. Tem limitação de quantidade de projetos e de teto por proponente."

Esse controle, acrescenta Freitas, é feito diretamente pela Secretaria Especial da Cultura, mas também pode ser feito pelo Ministério Público, pela Controladoria Geral da União e pelo Tribunal de Contas da União.

Segundo Freitas, os mecanismos de financiamento de cultura servem também para a criação de uma consciência da importância da cultura. "O Estado brasileiro decidiu no momento da elaboração da Constituição de 1988 que cultura seria uma área de priorização."

Então temos aqui uma primeira resposta para a nossa pergunta. Por que investir dinheiro público em cultura? Em primeiro lugar, porque é que diz a Constituição, segundo a qual o Estado deve garantir "a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional".

O governo Bolsonaro tem sido acusado de fazer justamente o oposto de zelar pela cultura. Produtores culturais têm observado uma lentidão nos processos da Rouanet desde que assumiu a gestão do ator Mario Frias, - que deixou o cargo para concorrer ao Legislativo pelo mesmo partido de Bolsonaro, o P. Gestão esta que foi guiada pelo braço direito de Frias, o policial militar André Porciuncula, que também deixou o cargo para tentar a sorte no Congresso.

Sobre Frias e Porciuncula, recaem até acusações de censura.

A gestão Frias afunilou a Rouanet, sob o argumento de descentralização de recursos. Uma recente instrução normativa diminuiu ainda mais o teto de captação e limitou os cachês que podem ser pagos a artistas.

CULTURA MOVIMENTA A ECONOMIA

E, já que estamos falando de dinheiro, fica aqui mais um motivo pelo qual tantos países investem dinheiro público em cultura - o econômico. Trata-se de um setor dinâmico que traz retorno financeiro e gera empregos, além de poder ser um vetor de desenvolvimento econômico.

A política pública de cultura ao longo das últimas décadas permitiu que grupos artísticos brasileiros se consolidassem como referências em suas áreas, como é o caso do Grupo Corpo, na dança, por exemplo.

"É uma coisa que eu acho sempre meio louco pensar por que há esse questionamento tão grande na atividade artística e cultural e não questiona por exemplo os subsídios dados à indústria automobilística, não se questiona 'trocentos' outros gastos públicos tão maiores", diz Cláudia Ribeiro, diretora de programação do Grupo Corpo.

De fato, Cultura não é nem de longe a área com orçamento mais gordo do Brasil - e isso não é coisa só deste governo.

A renúncia fiscal na cultura é cerca de 25 vezes menor do que a renúncia fiscal para comércio e serviços.

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GUERRAS CULTURAIS

Os palcos, telas e partituras muitas vezes tocam em temas sensíveis e têm o potencial de incomodar e mobilizar muita gente. Segundo estudiosos como João Cezar de Castro Rocha, autor do livro "Guerra Cultural e Retórica do Ódio", as guerras culturais são uma forma de manter mobilizada uma base eleitoral inflamada pelas redes sociais.

É quase rotineiro o surgimento de polêmicas em torno de produtos culturais, muitas vezes inflamadas pelo governo, fruto da era WhatsApp. Foi assim com "Bruna Surfistinha", filme de 2011 que foi desenterrado em 2019 por Bolsonaro em uma fala sobre financiamento público da cultura, e agora o alvo mais recente é um filme de Danilo Gentili.

Seguindo esse raciocínio, a cultura é sim muito importante, para o governo atual e para a nova direita. Só que é uma importância dada sob esse ponto de vista bem específico das guerras culturais - o que não demanda lá grandes investimentos.

A reportagem procurou a Secretaria Especial de Cultura para ouvir o posicionamento oficial sobre o gasto público com cultura, sobre os atrasos na análise de projetos e sobre as acusações de censura, mas não houve resposta até o momento da publicação deste texto.

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