Como primeira ideia para a batizar esta coluna, pensei em dois ótimos títulos de romances muito populares da literatura produzida no século XX, “Nosso Homem em Havana” e “O Agente Secreto” (“Our Man in Havana” e “The Confidential”), ambos do prolífico e influente romancista inglês Graham Greene, e ambos clássicos made in USA do drama moral noir, anos 1940 e 50).

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Bem, óbvio que Cannes não é Havana, e nem Kleber é agente ou secreto coisa nenhuma. Com certeza, e cada vez mais, ele é de fato, e por muitos méritos, muito próprios, nosso protagonista contemporâneo que desbravou o sacro território dos grandes festivais europeus, capitaneados por Cannes. Como já foram, em tempos mais ou menos remotos, Glauber Rocha, Cacá Diegues e Nelson Pereira dos Santos; e menos distantes, os bons filmes do agora ressuscitado Walter Salles.

Não é mais surpresa. A cada três, quatro anos, o pernambucano Kleber Mendonça Filho emplaca um longa-metragem na seleção oficial do Festival de Cannes, a mais importante e prestigiosa mostra de cinema autoral do planeta. Começou em 2012 com “O Som ao Redor”, seguido por “Aquarius” (2016), “Bacurau” (2019, Prêmio Especial do Juri) e “Retratos Fantasmas” (2023, sessão especial). Este ano, daqui a pouco, a partir de 13 de maio, ele volta à Croisette, mais especificamente ao Palais des Festivals, para mostrar, na corrida pela Palma de Ouro, principal seção competitiva do 78º Festival de Cannes, seu trabalho mais recente, “O Agente Secreto”, escrito e dirigido por ele em coprodução entre Brasil, França, Alemanha e Holanda.

Kleber Mendonça: cineasta brasileiro que tem na bagagem filmes como "Aquarius" e "Bacurau", concorre em maio, no Festival de Cannes, com o longa "O Agente Secreto"
Kleber Mendonça: cineasta brasileiro que tem na bagagem filmes como "Aquarius" e "Bacurau", concorre em maio, no Festival de Cannes, com o longa "O Agente Secreto" | Foto: Matheus Britto/Folhapress

A CONVIVÊNCIA COM KLEBER

Mas é interessante revisitar algo da pré-história de Kleber na Cote d’Azur. Da qual também participei, jornalista como ele, velhas focas desbravadoras – respectivamente enviados pelo Jornal do Comércio do Recife e pela Folha de Londrina –, ávidos pelo bom cinema e neófitos em eventos de tal magnitude artística. Era virada de século e então, quase homeless, passamos tempos eletrizantes à procura de hotéis baratos e comida idem para criar condições de sobrevivência digna para produzir uma cobertura jornalística fiel aos fatos e aos filmes.

Naqueles momentos, estertores dos anos 1990, berçário dos 2000, a cinefilia de Kleber já transbordava das escrituras do repórter e do crítico, e ele se exercitava (e se divertia) pelos caminhos sempre saudáveis do curta-metragem. Em pouco mais de dez anos, entre 1997 e 2009, foram seis filmes: “Enjaulado”, “A Menina do Algodão”, “Eletrodoméstica”, “Vinil Verde”, “Noite de Sexta, Manhã de Sábado” e “Recife Frio” – e um documentário de longa-metragem, “Crítico”.

Pouco tempo depois, entrando na segunda década do século 21 e já funcionando bem a contento nossa resoluta cooperativa com outros dois jornalistas (do Recife) e eu, fomos brindados pela leitura de páginas/esboços/rascunhos/impressões de suas ideias/roteiros de “O Sonho ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”

“O Agente Secreto” se passa no Brasil há quase 50 anos, em 1977. Marcelo (Wagner Moura), professor quarentão especializado em tecnologia, sai da caótica São Paulo e vai para Recife, tentando fugir de um passado tão nebuloso quanto violento e misterioso. Ele quer recomeçar. Ou começar vida nova. Volta para sua cidade justo na semana do Carnaval; e após o período festivo ele curte a paz e a calmaria da cidade. Que, entretanto, dura pouco e vai se esvaindo. Então percebe que está novamente envolvido pelo caos do qual sempre quis fugir. Para piorar a situação, além de estar sendo espionado por seus vizinhos, a cidade que achou que o acolheria está bem longe de ser o seu refúgio.

Aos poucos, bem à estudada, calma e certeira maneira dele, Kleber vem fazendo de sua Recife o ponto de reflexão para sua família, sua casa, seu bairro, sua cidade, seu país e para o planeta ao redor. Para o pessoal, o social e o político. Até o momento, seus quatro longas, “O Som...”, “Aquarius”, “Bacurau” e “Retratos...” e agora esse “O Agente... (aposto), vale dizer, o cinema dele: tudo reflete exatamente isso.

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