Nem toda a nudez será castigada. Em decisão publicada na semana passada, o juíz da 4ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Paraná deferiu um pedido de habeas corpus impetrado pela defesa do artista curitibano Maikon Kempinski e determinou o trancamento de uma ação penal que o acusava de ter exibido um "espetáculo obsceno" e praticado "atentado ao pudor" em Londrina. Na prática, o processo, nascido após a apresentação da performance "DNA de DAN", em outubro de 2017 no anfiteatro do Lago Igapó, deixa de existir. Entretanto, ao extrapolar a frieza de um parecer jurídico, o fato provoca uma série de reflexões sobre a censura nas artes e torna o tema explorado por Nelson Rodrigues em 1965 e apresentado em Londrina pelo Grupo Delta em 1985, novamente atual.

Na decisão, o relator do caso, Aldemar Sternadt, classificou a situação como "absurda, desarrazoada e inaceitável", e ressaltou que o espetáculo em nenhum momento constituiu crime de ato obsceno. "A arrogância e a ignorância saltam aos olhos! São pessoas que se arvoram tutores de uma população inteira, hipócritas que acreditam ter o poder de censurar o que o vizinho pode ouvir, ver e consumir", avaliou o magistrado.

Em o “DNA de DAN”, Maikon K, como é conhecido, dispensa figurinos e protagoniza uma transformação dentro de uma bolha translúcida depois que uma substância gelatinosa colocada sobre a sua pele, seca. Um argumento que envolve a descoberta do formato "serpentiforme" do dna humano e representa a serpente como um animal cultuado por outros povos. "A palavra Dan significa serpente em um dialeto de uma parte específica da África e é um anagrama de DNA, este é o argumento que eu parti", explicou.

Ao final, alguns espectadores são convidados para acompanhar a performance do lado de dentro. À época, a equipe do Festival de Dança deixou claro que o espetáculo envolvia a nudez masculina em seus cartazes, além de ter providenciado profissionais para orientarem a população que passava pela pista, especialmente com crianças.

Entretanto, do lado de fora da bolha de Maikon, uma senhora decidiu chamar a Polícia Militar e ir à Delegacia. Porém, o artista só não foi preso novamente - como ocorreu em Brasília (DF) - porque espectadores constituíram uma corrente e o conduziram para outro ponto. Em nenhum momento, os policiais militares tentaram capturar o artista ou chamar reforços para conter o levante.

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. | Foto: Fábio Alcover/ Divulgação

Para o advogado André Feiges, que defendeu Maikon ao lado de Mariana German, a decisão foi muito bem recebida porque mostra que a população de Londrina não precisa de censor. "A população tem consciência e cultura para decidir o que ela deve acompanhar ou prestigiar e não precisa que alguém venha a dizer por ela", avaliou.

Questionado se cabe recurso da decisão, Feiges lembrou que sim, mas considerou completamente improvável que o Ministério Público do Paraná decida recorrer ao Supremo Tribunal Federal. "Por questões técnicas já que a jurisprudência do STF é favorável à liberdade de expressão. De ordem pragmática também, por ser um caso de menor potencial ofensivo. Não é normal um promotor correr tanto atrás do Maikon, ele é artista, estava sempre na estrada. Existiram vícios procedimentais, como enviar um e-mail para uma pessoa perguntando se ele aceitaria um acordo. É um absurdo, qualquer comunicação precisa ser via oficial de justiça", avaliou a defesa.

Antes de "subir" para o Tribunal de Justiça, o processo, que corria em segredo de Justiça, foi julgado no 4º Juizado Especial de Londrina. Já no TJPR, o relatório de Sternadt foi seguido pelos juízes Leo Henrique Furtado Araújo e Bruna Greggio.

Produtora cultural foi ameaçada

Para Danieli Pereira, coordenadora do Festival de Dança de Londrina, a decisão corrobora a responsabilidade com que a equipe sempre conduziu todas as 17 edições do evento. Entretanto, não deixa de representar um "alívio" do ponto de vista de pessoal uma vez que centenas de manifestações odiosas foram feitas contra os envolvidos nas redes sociais, majoritariamente, por pessoas que não se preocuparam em enxergar o contexto, apenas a nudez.

"Teve um movimento de fake news, com milhares de curtidas e quem dera se a performance tivesse sido assistida por tanta gente, então para elas foi algo muito passageiro. O que mais me assustou foi ver essa violência nas pessoas comuns, diziam que nos afogariam no lago, que queriam colocar fogo em todos que estavam ali, que deveriam me jogar em um quarto com vários homens nus para fazerem o que quisessem, comentários de cunho sexual e nada disso estava no meu trabalho", lamentou.

À reportagem, Maikon Kempinski avaliou que a decisão "marca um território" tanto no seu trabalho, quanto na biografia do Festival de Dança e reverbera positivamente para toda a cidade de Londrina. "Eu preferi não fazer um acordo com a Justiça porque pra mim era assumir uma culpa de algo que eu não fiz. Isso pode proteger outros artistas e até o meu próprio trabalho no futuro", ressaltou.