João Medeiros possui hoje 102 anos de idade. Há 75 anos deixou para trás o sertão do Cariri, na Paraíba, para se instalar no sertão do Paraná, na cidade de Cianorte. Na carroceria de um caminhão, trazia a esposa e 15 filhos pequenos. Um homem comum dentre outros tantos brasileiros comuns seguindo o destino.

A história de João Medeiros está em “O Último Pau de Arara”, novo livro do escritor e jornalista Jotabê Medeiros que está sendo lançado pela editora londrinense Grafatório, trata-se de uma biografia do pai do autor. A edição transforma o livro em objeto estético produzido artesanalmente, com a capa impressa em lona de caminhão e xilogravuras originais gravadas em galhos de peroba por Luís Matuto.

Após escrever a biografia de duas emblemáticas figuras da música popular brasileira, “Belchior: Apenas um Rapaz Latino-Americano” (Todavia, 2017) e “Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida” (Todavia, 2019), Jotabê Medeiros se debruça sobre a tarefa de escrever a biografia do próprio pai, João Medeiros.

Mais do que a biografia de um homem comum, “O Último Pau de Arara” narra a trajetória de pessoas pelo território que passou a ser nomeado de Brasil Profundo. Realiza a leitura de uma modesta família que vive entre o mundo arcaico e a vida contemporânea, uma típica família brasileira distante de qualquer visibilidade. A obra também pode ser considerara um potente ensaio realista, e ao mesmo tempo afetivo, sobre a paternidade.

A seguir, Jotabê Medeiros, que viveu em Londrina na década de 1980 estudando na Universidade Estadual de Londrina e atuando como jornalista na Folha de Londrina, fala seu novo livro.

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. | Foto: Renata Parada/ Divulgação

Você escreveu a biografia de duas personalidades populares da música brasileira, Belchior e Raul Seixas. Agora escreve a biografia de seu pai, Medeiros. Como foi passar pelo processo de biografar vidas famosas para biografar uma vida comum?

Raul Seixas e Belchior são artistas cujas obras apontam para a resolução de muitas questões relativas à identidade nacional, em minha opinião. Eles tentaram, pela poesia, pelo som, pelo lirismo ou pelo sarcasmo, explicar o Brasil, as motivações nacionais, as origens e os resultados das paixões e das misturas, sejam elas culturais, sociais, políticas ou religiosas. Eu me pus a acreditar que fosse possível, na biografia de um homem comum, fazer esse mesmo percurso de clarear algo do mundo em que vivemos, as decisões que tomamos, os destinos que nos são impostos. Talvez esse tenha sido o principal veio, a corrente, a aproximar as três histórias: uma busca da elucidação do destino brasileiro.

Nas primeiras páginas de “O Último Pau de Arara” você escreve: “Essa uma obra de fricção. Espremida entre a memória e a vontade de contar.” O que isso significa?

A frase é para explicar o que entendo por esse exercício de alicerçar uma obra principalmente na memória pessoal: ela pode conter vazios, ‘gaps’, descontinuidade. Assim, muitas vezes, esses “vãos” estão preenchidos com as histórias dos outros e a memória dos outros, mas eu considerei que isso não podia ser um impeditivo. Eu ia contar essa história de qualquer jeito, mesmo que tivesse de arrancá-la da minha desmemória. O que é importante para o leitor saber é que nada ali é mentira, é tudo verdade – só que, de vez em quando, tem uma coreografia, a história também dança.

“O Último Pau de Arara” não traz uma biografia tradicional, segue o caminho de realizar a leitura de uma família. O que representa ler a própria família?

Essa é a parte mais complicada. O biógrafo Lira Neto uma vez disse, durante uma palestra da qual participamos juntos, que não gostaria de ver alguém biografando a mãe dele, ele certamente iria discordar do resultado. Era uma pilhéria, mas com âncora na realidade. É esse o conflito central da biografia: ninguém quer que contem tudo, ou que alguém chegue às motivações de tudo que a nossa vida carregou consigo. Sempre haverá algo que gostaríamos de sonegar, ou arredondar. Ao me propor a contar a história da minha família, tive medo de magoar alguém, mas resolvi que não há mágoa que seja mais forte que a verdade.

Como julgar nossos pais, considerados antigos, a partir de nossas referências contemporâneas?

O julgamento do passado é a grande questão do nosso tempo. Quando não o examinamos, por delicadeza ou medo, corremos o risco de normalizar o que já passou. Ao mesmo tempo, o mundo está em movimento, as regras sociais mudaram, o homem arcaico perdeu sua capacidade de arbitrar as coisas contemporâneas, os desejos modernos. O que eu pretendi com a história do meu pai foi vê-lo e retratá-lo exatamente da forma como ele era, é a grande justiça que posso reivindicar. Quero permitir ao leitor fazer o seu julgamento, e ao mesmo tempo deixar claro que eu e meus irmãos o absolvemos porque nós achamos que é o amor que nos mantém unidos, e o rancor não pode avançar nesse território. Que o homem que ele é agora, aos 102 anos, não é o homem que ele foi aos 40 anos, aos 50 anos, que a vida também lhe deu as condições para compreender.

Há uma grande possibilidade de o leitor reconhecer o próprio pai na narrativa de “O Último Pau de Arara”, o pai de uma geração que nasceu 50 anos atrás: o pai seco, duro, áspero e rígido. Você acha que esse tipo de pai se tornou obsoleto?

Eu acredito no deslocamento das ideias, das paixões, dos conflitos e cenários. Quando Kurosawa filma um conflito de Shakespeare no Japão feudal, a gente parece estar sendo transportado para Marte, para um lugar que não existe senão em alguma visão onírica, mas nós entendemos que todas as divisões humanas estão presentes, que os dramas ali pertencem à humanidade, embora num cenário tão pouco familiar. Creio que a história do meu pai tem um pouco disso: pouca gente terá vivido experiências tão ferozes, brutas, mas os anseios de filhos, mãe, sobrinhos, homens, mulheres, isso está sempre brilhando por baixo de tudo, iluminando a nossa condição humana.

No livro você levanta a tese de que, em algum momento da existência, os filhos precisam admitir que não conhecem os próprios pais. O que representa admitir isso?

Sempre cito o poema “Os Outros”, de Jorge Luis Borges, como uma referência fundamental. Ele começa assim: “Amamos o que não conhecemos, o já perdido”. As grandes instituições sociais, como o casamento, a paternidade e a maternidade, essas experiências acontecem em movimento. Um casal que se casa aos 22 anos de idade cada um, quando ele chega aos 50 anos, ambos estão mudados. Os filhos, que cresceram em ambientes distintos, frequentando universidades e bares e lugares diversos, também se distanciam da infância. Há um momento em que é bom reencontrar o encantamento e os mistérios que nos mantém juntos, ou ao menos reapresentar a todos a pulsação dos sentimentos comuns, dos afetos. Refazer as ligações ou escancarar as incongruências.

Você está trabalhando em uma nova biografia?

Sim, estou prestes a publicar uma nova biografia. Não posso ainda dizer o nome do biografado, isso está previsto em contrato, mas posso dizer o seguinte: trata-se de um artista cuja obra é tão abrangente que nenhum de nós escapou dela. Todos o ouvimos, todos temos alguma de suas canções em nossas trilhas sonoras.

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. | Foto: Divulgação

Serviço:

“O Último Pau de Arara”

Autor – Jotabê Medeiros

Editora – Grafatório

Xilogravuras – Luís Matuto

Páginas – 176

Quanto – R$ 85

Onde Comprar – www.grafatório.com