Uma pandemia pode mudar muita coisa. Pode derrubar a economia, pode abalar a estrutura social. Pode deixar as pessoas distantes. Pode saturar o sistema de saúde. Pode deixar as pessoas angustiadas.

Uma pandemia pode mudar tudo. Pode mudar o mundo. Pode mudar as pessoas. Mas nem tanto. Ela revela aquilo que o ser humano é.

Para o escritor português José Saramago (1922 – 2010), uma pandemia também pode deixar as pessoas completamente cegas. Uma cegueira capaz de interromper a capacidade de enxergar a realidade com lucidez. Em meio ao caos de uma pandemia, as pessoas podem perder a lucidez e a consciência da visão. Ou até mesmo perder a razão. Ou perder a humanidade.

José Saramago expressa essa tese em “Ensaio Sobre a Cegueira”, romance escrito em 1993 e publicado originalmente em 1995. Semana passada a editora Companhia das Letras colocou nas livrarias uma nova edição do livro. Nas palavras do autor, a obra pode ser descrita como uma alegoria sobre “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.

Em 'Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago fala de uma pandemia e da “necessidade de ter olhos quando todos os perderam”
Em 'Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago fala de uma pandemia e da “necessidade de ter olhos quando todos os perderam” | Foto: Foto: Acervo Fundação José Saramago/ Divulgação

Em um momento de exceção, como uma pandemia inesperada onde a normalidade das coisas é alterada, os homens podem ser acometidos por uma peculiar cegueira: a falta de visão humanitária. Um tipo de cegueira onde tudo que interessa está em salvar a própria pele, defender os próprios interesses, preservar o próprio patrimônio, ganhar o jogo político, defender determinada ideologia, enfim, promover o pandemônio em vez de apaziguar a pandemia.

Em “Ensaio Sobre a Cegueira”, Saramago narra a história de uma pandemia metafórica. Sem nenhuma explicação, a população começa a perder a visão. Não a cegueira habitual onde tudo se torna negro, mas uma cegueira onde tudo se torna extremamente branco e nada mais se vê.

A doença contagiosa se espalha pela população e as autoridades governamentais não sabem o que fazer. A reação básica é isolar os doentes para evitar a propagação da enfermidade. Para isso criam um campo de concentração onde os cegos são depositados com requintes de crueldade. Isolados, os doentes criam outra sociedade que reproduz toda a maldade que existia na sociedade da qual foram renegados.

O isolamento reproduz tudo aquilo que há de bom e de ruim num mundo sem confinamento. Ou seja, para o ser humano é impossível distanciar-se de sua humanidade, como é igualmente impossível distanciar-se de sua desumanidade.

Quando foi lançado em 1995, Saramago declarou que “Ensaio Sobre a Cegueira” foi o livro mais doloroso e aflitivo que havia escrito: “Através da escrita tentei dizer que não somos bons e é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”.

A obra traz um grupo de cegos vagando pelas cidades procurando sobreviver em situações limites. O detalhe é que uma mulher, que integra o grupo, inexplicavelmente não foi contagiada pela enfermidade. É a única pessoa que enxerga e procura esconder o fato de todos. Vive a “responsabilidade de ter olhos quando todos os perderam”.

As imagens descritas por Saramago são angustiantes dentro de um cenário desolador. Multidões de cegos vagando pelas ruas em busca das mais básicas das necessidades humanas. A não ser pela primeira iniciativa de campo de concentração dos infectados, o Estado nada mais faz. Simplesmente deixa de existir. A sobrevivência recai sobre os braços dos cidadãos, recai sobre a consciência dos indivíduos.

Falecido em 2010, aos 87 anos, José Saramago foi o único autor da língua portuguesa a receber, em 1998, o prêmio Nobel de Literatura. “Ensaio Sobre a Cegueira” foi transformado em filme, em 2008, pelo cineasta Fernando Meirelles.

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. | Foto: Reprodução

Serviço:

“Ensaio Sobre a Cegueira”

Autor – José Saramago

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 312

Quanto – R$ 49,90 e R$ 37,90 (e-book)