CANNES, FRANÇA - O Festival de Cannes, insaciável fonte de atenção, escolheu a polêmica para abrir sua 76ª edição, nesta terça (16). A princípio, "Jeanne du Barry" pode parecer inofensivo e exageradamente francês. Basta olhar para os rostos do cartaz, porém, para entender o porquê de ter gerado tanto frenesi.

Johnny Depp, ator americano que se viu num imbróglio judicial com a ex-mulher, Amber Heard, foi escalado para viver o rei francês Luís 15, em seu primeiro papel depois do caso hipermidiatizado. Uma escolha interessante - dele, de carreira, e da diretora Maïwenn, de elenco.

Por isso, o filme é tratado com as láureas normalmente reservadas apenas à mostra competitiva e aos poucos blockbusters que desfilam na Riviera Francesa, atraindo muito mais interesse que o longa inaugural da edição passada, o insosso "Final Cut!", de Michel Hazanavicius.

"Jeanne du Barry", provavelmente mais por acaso do que por intenção, usa a onda de curiosidade para engrandecer ainda mais sua trama, de tons épicos escancarados já nos créditos iniciais, acompanhados de uma trilha sonora pesada.


Não é para menos. Maïwenn grava, afinal, a vida de uma das figuras mais curiosas e romantizadas da corte francesa, a condessa Du Barry. De criança pobre a cortesã de luxo e, depois, de amante preferida do rei Luís 15 a vítima da guilhotina revolucionária, Marie-Jeanne Bécu teve uma trajetória que se enquadra no velho conto do renegado que, contra tudo e contra todos, sobe na vida.

Material perfeito para Hollywood. Só que "Jeanne du Barry" não é Hollywood. É francês, como o festival no qual estreia, e traz Depp pela primeira vez numa produção do país, falando numa língua estranha a ele. O sotaque às vezes aparece, mas nada que incomode -ao menos os não nativos.

Apesar da saída da zona de conforto na qual estava convenientemente há anos, com papéis em franquias ou pouco expressivos, o ator americano não está menos no piloto automático do que em "Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald" ou "Assassinato no Expresso do Oriente", dos quais saiu com a imagem queimada seja pelo trabalho ou pelas acusações de violência doméstica que enfrentou em paralelo.

É especialmente inquietante, portanto, que "Jeanne du Barry" tenha entre suas cenas, justamente, um caso do tipo. Deitada na banheira, a protagonista lê um livro quando o marido entra na sala e, furiosamente, agarra seus cabelos e a afunda na água diversas vezes. Ele grita incansavelmente e, na cena seguinte, a mulher aparece com um corte arroxeado perto dos olhos.


A trajetória de Jeanne é atravessada pelo machismo, e Maïwenn, que também vive a personagem, não esconde a vontade de pincelar o filme com tons feministas. Ao acompanhar toda a sua vida, com uma narração em off um tanto preguiçosa, o longa mostra como ela estava à frente de seu tempo, como desafiou costumes caretas da sociedade francesa do século 18.

Ela usa as roupas que quer, dispensa a peruca, vai a festas, se embebeda, beija e transa com todos e brada, a certa altura: "O corpo é meu!". A sensação, muitas vezes, é que ela se deixa manipular pelos interesses escusos dos homens à sua volta. Mas quando encontra o monarca, se torna claramente a pessoa que dá as cartas, e é ele quem paga de bobo influenciável.

Depp, por causa desse perfil, entrega o que já estamos acostumados a ver dele. Caretas e trejeitos que, ao menos, corroboram para o lado mais secundário e leve de "Jeanne du Barry", que faz chacota dos maneirismos da aristocracia como tantos outros filmes e séries recentes.

Detestada por quase todos na corte, a protagonista enfrenta o jeito excessivamente caricatural das filhas do rei -que lembram as irmãs idiotizadas e enciumadas de "Cinderela"- e o retrocesso de uma época contrária os modos da amante do rei, que chegou a simpatizar com a Revolução Francesa antes de ser degolada.

Com uma femme fatale à frente, "Jeanne du Barry" consegue estourar a bolha Johnny Depp e conquistar o interesse do público pela personagem em si, embora a condução da trama fique na maior parte do tempo no superficial.

Quando tenta se aprofundar em alguma discussão, como a do racismo, que tem seu estopim quando o rei presenteia a protagonista com um garotinho africano, o filme soa excessivamente didático, mas nem por isso desinteressante.