Um livro de entrevistas, fotobiografia e coletâneas são alguns conteúdos programados para celebrar, em 2020, o centenário do reconhecido escritor João Cabral de Melo Neto. Natural de Recife, Pernambuco, nasceu em 9 de janeiro de 1920 e faleceu em 9 de outubro de 1999 no Rio de Janeiro.

Na década de 40 ingressou na carreira de diplomata, trabalho que o fez observar o mundo não só pelos lugares em que esteve, mas pela sensibilidade que o inquietava. Serviu em Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Madri, Genebra e Berna - foi promovido a Ministro Conselheiro e serviu também em Assunção, no Paraguai. Graças ao seu relevante trabalho, já existe também público e muita expectativa em torno de dois exemplares reunindo sua obra completa em poesia e os textos em prosa.

Bastante difundida, "Morte e Vida Severina", obra publicada em 1955, tornou João Cabral reconhecido no mundo da dramaturgia, e no quesito premiação, iguala-se a "Educação Pela Pedra", de 1965. O primeiro, um auto natalino, faz do rio Capibaribe fio condutor do sertão para a periferia do Recife.

Severino, personagem principal, é um retirante que, assim como o rio, corta o sertão e acaba nos mangues de Recife. O nome próprio vira adjetivo ao longo do auto e dá ao personagem um sentido coletivo: não é mais “o” Severino e, sim, uma vida severina - que traz também à tona a problematização da relação morte-vida, efeito realçado ainda pela toponímia do sertão, pelos elementos econômicos (plantação da cana, os engenhos e usinas), pelos traços geográficos (rios, paragens, agreste, caatinga, mata).

Em "Educação pela Pedra", por sua vez, a objetividade, a dimensão figurativa, o planejamento e a organização dos 48 poemas se sobressaem, um exemplo é o poema “A urbanização do regaço” (leia o poema nesta página).

João Cabral de Melo Neto: na sua poesia existe a preocupação com o ritmo e a dicção, além da negação dos recursos fáceis
João Cabral de Melo Neto: na sua poesia existe a preocupação com o ritmo e a dicção, além da negação dos recursos fáceis | Foto: Folhapress

Um gigante da literatura

O tradutor, professor de Literatura da UEL, doutor em Letras e apresentador da coluna Literatura Viva, na Rádio UEL, Frederico Garcia Fernandes, apresenta o escritor João Cabral de Melo Neto da seguinte forma: "Pode ser considerado um daqueles raros gênios da literatura brasileira. Existem vários aspectos de onde é possível identificar os traços formadores de sua genialidade, mas vou ressaltar apenas dois. O primeiro reside naquilo que Benedito Nunes, um grande crítico de sua obra, apontou como dialética do desterramento, caracterizada pelo movimento de separação e retorno de um lugar, um movimento de ida e volta, o que lhe permitiu uma percepção distanciada de uma realidade outrora próxima e que é contrastada com a realidade com a qual passa a viver."

O segundo aspecto mencionado por Fernandes é a genialidade de João Cabral na literatura brasileira. "Sua poesia não deixa de ser considerada uma insurgência à poesia modernista, mas também há nela o reconhecimento de uma tradição e de um diálogo sem o qual não se chegaria ao racionalismo esquivo do lirismo e ao distrato com a expressão de sentimentos pessoais".

Para Fernandes, sem os modernistas a poesia de João Cabral não alçaria o reconhecimento internacional que teve. Ele observa: "Há na poesia de João Cabral, em contraste aos modernistas, a preocupação com o ritmo e a dicção, o equilíbrio na composição, a negação ao emprego de recursos fáceis e vulgares como o trocadilho e a piada comuns aos modernistas.

Por tantos motivos, seu lugar na literatura é situado junto à Geração 45. "Um grupo de poetas afinados com a crítica ao modernismo e de retorno ao verso elevado, mas a escolha de João de Cabral foi além disso, tornando-se a base para o surgimento de uma nova vanguarda poética brasileira (o Concretismo), em 1956".

Ainda as palavras do professor, todo este trânsito fez com que João Cabral preparasse o terreno para uma poesia diferenciada. "Em que paisagens, pessoas, tradições e linguagens dos vários lugares onde morou pudessem se fazer presentes. Sem alterar sua linha de construção racional, antilírica, João Cabral vincula a hispanidade à nordestinidade, criando um tipo de dialeto andaluz-caipira".

Segundo Fernandes, a prosificação do verso é outro aspecto considerado. "São versos mais longos e com ritmo variados, o que levou alguns críticos e historiadores da Literatura Brasileira, como Eduardo Portela, a dizer que João Cabral havia incorporado uma flutuação silábica típica da lírica espanhola do século XII. É dela também que está um dos poemas mais conhecidos de João Cabral, “Tecendo a Manhã".

Principais obras do autor

“Pedra do Sono” (1942), O Engenheiro, (1945), Psicologia da Composição (1947),“O cão sem plumas” (1950), “A educação pela pedra” (1966) e “Morte e Vida Severina” (1966).

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DOIS POEMAS

Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

A urbanização do regaço

Os bairros mais antigos de Sevilha

criaram uma urbanização do regaço

para quem, em meio a qualquer praça,

sente o olho de alguém a espioná-lo,

para quem sente nu no meio da sala

e se veste com os cantos retirados.

Com ruas feitas com pedaços de rua,

se agregando mal, por mal colados,

com ruas feitas apenas com esquinas

e por onde o caminhar fia quadrado,

eles têm abrigos e íntimos de corpo

nos recantos em desvão e esconsados.

Com ruas medindo corredores de casa,

onde um balcão toca o do outro lado,

com ruas arruelando mais, em becos,

ou alargando, mas em mínimos largos,

os bairros mais antigos de Sevilha

criam o gosto pelo regaço urbanizado.

Eles têm o aconchego que a um corpo

dá estar no outro, interno ou aninhado,

para quem torce a avenida devassada

e enfia o embainhamento de um atalho,

para quem quer, quando fora de casa,

seus dentros e resguardos de quarto.”

(João Cabral de Melo Neto)

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