É só um filme! Isso é verdade tanto para “Sem Ursos” quanto para qualquer outro. Mas pode não haver nenhum cineasta vivo que tenha considerado as implicações práticas e filosóficas da forma de arte – o trabalho de filmar e cortar; o prazer e a ansiedade de assistir – com tanto rigor ou perspicácia quanto o sexagenário diretor iraniano Jafar Panahi. Seu filme que fala dos “ursos” entra em exibição nesta segunda (dia 12) no Cine Ouro Verde.

Panahi não pode ser acusado de fazer filmes levianamente ou de se levar muito a sério. Ele continuou a praticar seu ofício, de forma consciente e até divertida, arriscando seu conforto, sua liberdade e possivelmente sua vida. Quando, em 2010, o governo iraniano o proibiu de dirigir, ele respondeu com “Isto Não é um Filme”, um diário em vídeo de longa-metragem filmado parcialmente com um iPhone e tecnicamente não “dirigido” de forma alguma.

Nos anos seguintes, ele continuou nessa linha de metacinema clandestino, interpretando a si mesmo (em “Cortinas Fechadas” e “Taxi Teerã”) menos como um autor heróico do que como um curioso, gentil, às vezes tolo pai de família de meia-idade que não pode perder o hábito de transformar a vida em filme (ou, para ser mais preciso, em vídeo digital). Seus filmes são pessoais e também políticos, pois ele aponta seu olhar interrogativo para as pequenas hipocrisias e grandes injustiças do Irã moderno, bem como para os paradoxos de sua própria prática criativa.

Não muito depois de “Sem Ursos” ser concluído – foi filmado em segredo no início de 2022 – Panahi foi condenado no Irã a seis anos de prisão. Nos meses seguintes, protestos em massa em desafio à autoridade da República Islâmica varreram o país e foram respondidos com repressão brutal. O filme não aborda explicitamente a agitação ou qualquer outro assunto público; os cineastas iranianos tendem a lidar obliquamente com questões potencialmente controversas, caminhando na linha entre o realismo e a fábula e confiando no público para entender as implicações de suas histórias, mensagens sutis que os censores tendem a ignorar. Panahi foi pioneiro nessa abordagem no início dos anos 2000 - ao mesmo tempo em que testou seus limites - confrontando a misoginia e a desigualdade de classe em varios filmes, como "O Círculo", exibido em Londrina pelo Cine Com-Tour/UEL. Desde a proibição, como seu trabalho reflete sua própria situação, ele encontrou novas maneiras de combinar a crítica social com a autocrítica.

“Sem Ursos” encontra Panahi (novamente interpretando a si mesmo) ocupando quartos alugados em uma vila perto da fronteira com a Turquia, longe de sua casa em Teerã. Em uma pequena cidade na Turquia não muito longe da aldeia, um filme está sendo rodado sob sua direção – aparentemente baseado na história da vida real de dois exilados iranianos, Zara (Mina Kavani) e Bakhtiar (Bakhtiar Panjei), que esperam encontrar asilo na França. Panahi supervisiona a produção em seu laptop e celular quando tem sinal, o que não é frequente. Seu assistente de direção tenta convencer Panahi a visitar o set, talvez com a ajuda dos contrabandistas e traficantes de pessoas que controlam a área. Mas a fronteira é uma linha que o diretor não cruzará.

Melhor não dizer mais nada além do que já anotei na coluna “O Cinéfilo Fiel” desta quinta. Exceto que, quando a tragédia chega, dentro e nos bastidores da história do casal de amantes Zara e Bakhtiar, ela parece chocante e inevitável. Panahi, cuja coragem e honestidade estão fora de dúvida, fez um filme que questiona seus próprios limites éticos e contradições estéticas. “Sem Ursos” propõe algumas questões importantes. Por que fazer um filme? Por que assistir a um? Por mais banais que sejam essas perguntas, elas também são inquietantes. O mundo está tão inundado de imagens que entender o que já existe pode parecer paralisante; adicionar algo novo pode parecer a própria definição de absurdo. O sentimentalismo sobre o poder do cinema – de sensibilizar, expandir a empatia, confrontar a verdade, mudar o mundo – espelha um cinismo que insiste na banalidade do cinema. Talvez a arte não salve ninguém, nem mude nada. Então, por que se preocupar com isso? E o título parece um bom slogam e uma crença necessária em um mundo muito assustador, mas também, quem sabe, uma ficção consoladora. Insistir que não há ursos pode ser apenas uma forma educada de reconhecer que os ursos somos nós.

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