Na contramão de diversos episódios explícitos de racismo ocorridos com frequência no Brasil, a prefeitura de São Paulo anunciou que vai homenagear cinco personalidades negras com estátuas que serão instaladas na capital paulista dentro de aproximadamente seis meses. Um dos homenageados será o cantor e compositor Itamar Assumpção (1949-2003). Um dos expoentes da Vanguarda Paulista, movimento cultural marcado pelo experimentalismo que aconteceu entre os anos de 1979 e 1985, o artista teve uma forte ligação com Londrina. Após morar em Arapongas na infância, para onde seus pais se mudaram após deixar a cidade de Tietê (SP), onde nasceu, ele iniciou sua trajetória artística na capital mundial do café fazendo teatro e shows musicais nos palcos da cidade.

A prefeitura de São Paulo ainda não foi definido o local que vai abrigar a estátua de Itamar, que já teve músicas de sua autoria gravadas por Rita Lee, Cássia Eller, Tom Zé, Ney Matogrosso e Zélia Duncan. Existem duas prováveis localizações para receber monumento. Um deles pode ser a Casa de Cultura da Penha, onde Itamar gravou a trilogia “Bicho de 7 cabeças”, em 1993. Ou então a Praça Benedito Calixto, importante espaço cultural da cidade localizado próximo ao antigo teatro Lira Paulistana.

Itamar Assumpção: artista que teve forte ligação com Londrina, será homenageado pela prefeitura de São Paulo com estátua em local ainda não definido
Itamar Assumpção: artista que teve forte ligação com Londrina, será homenageado pela prefeitura de São Paulo com estátua em local ainda não definido | Foto: João Quaresma/ Folhapress

A homenagem a Itamar e outras personalidades negras está sendo muito bem recebida pela família do artista que também atuou escritor, instrumentista, ator e produtor. “Eu acho que é um movimento muito positivo, urgente e extremamente necessário para poder recontar a história da cultura popular brasileira, das pautas todas que que estão sendo requisitadas com muita atenção e organização de vários grupos e comunidades que batalham há muitos anos por reconhecimento, justiça e igualdade de direitos. São apenas cinco estatuas. Acredito que seja um movimento inicial para uma série de transformações tanto na cidade quanto no estado e também no Brasil, porque São Paulo acaba espelhando pro resto do país”, afirma Anelis Assumpção, filha de Itamar.

Anelis Assumpção, filha de Itamar: "Suas composições, assim como ele, foram marginalizadas por um sistema muito maior"
Anelis Assumpção, filha de Itamar: "Suas composições, assim como ele, foram marginalizadas por um sistema muito maior" | Foto: Greg Salibian/ Folhapress

Cantora e compositora que iniciou a carreira artística como vocalista da banda do pai, Anelis destaca que a homenagem prestada pela prefeitura de São Paulo é um reconhecimento ao artista que sempre trabalhou de forma independente, sem contar a ajuda de grandes gravadoras comerciais. “As composições do Itamar, assim como ele, foram marginalizadas por um sistema muito maior. E a nossa batalha, minha, da família e de parceiros é realmente ampliar, poder derrubar esses muros que foram construídos entre artistas de grandes gravadoras e todo o resto dos artistas que seguiram e seguem produzindo e distribuindo de forma independente conteúdos extremamente importantes e enriquecedores pra cultura popular”, ressalta.

Anelis enfatiza ainda que a obra de Itamar continua sendo divulgada pela família por meio de um museu virtual criado no ano passado. "Esse museu é uma forma de ampliar, de expandir a produção da obra e da figura que o Itamar disponibilizando de forma segura e oficial pra velhos ouvintes e novos ouvintes. Através dessa plataforma a gente percebe um crescente número de pessoas que conhecem, visitam e revisitam essa obra diariamente”, salienta sobre o material que pode ser acessado pelo site www.itamarassumpcao.com

RESGATE HISTÓRICO

As cinco estátuas que serão instaladas em homenagem a celebridades negras foram encomendadas pela prefeitura de São Paulo após a constatação que dos 200 monumentos a pessoas catalogados naquela cidade, apenas cinco são negros. Além de Itamar Assumpção, serão homenageados Carolina Maria de Jesus, uma das escritoras mais lidas do país com cerca de 3 milhões de livros vendidos e editados em 16 idiomas; o músico Geraldo Filme (1928 – 1995), um dos pioneiros do samba de São Paulo; Adhemar Ferreira da Silva, o único atleta brasileiro a conquistar duas medalhas de ouro no salto triplo nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952, e em Melbourne, no ano 1956; e Deolinda Madre (madrinha Eunice), que saiu de Piracicaba para fundar uma das primeiras escolas de samba da capital paulista.

MEMÓRIAS E PARCERIAS ETERNAS

Arrigo Barnabé, com Itamar ao fundo: "Acho que ele é um dos últimos autores de canção"
Arrigo Barnabé, com Itamar ao fundo: "Acho que ele é um dos últimos autores de canção" | Foto: Ed Vigianni/Folhapress

A parceria entre Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé teve início em Londrina, anos antes de os dois músicos agitarem o cenário artístico nacional como ícones do movimento Vanguarda Paulista. “A gente se conheceu no começo de 1971, eu acho que num festival de música universitária. Quem tinha mais contato com ele era meu irmão Paulo, que fazia roda de samba com o Itamar. Lembro também do Itamar se apresentando com o grupo de teatro da Nitis Jacon fazendo o papel de Tiradentes. Na época que a gente fez o “Na Boca do Bode” [festival universitário promovido em 1973] aí em Londrina nós ficamos mais amigos”, lembra Arrigo Barnabé.

O cantor e compositor londrinense lembra da época em que convidou Itamar para se mudar para a terra da garoa. “Falamos que ele podia vir pra São Paulo que a gente conseguiria uma república pra ele ficar. Ele estava na dúvida entre ir para Rio e São Paulo. Mas veio para São Paulo porque queria jogar futebol. Ela já tinha jogado no time de Arapongas e chegou a tentar uma vaga no Santos, na época em que Pelé ainda jogava lá. Mas depois desistiu dizendo o pior jogador da Vila Belmiro jogava muito melhor que ele”, comenta Arrigo antes de lembrar das iniciativas musicais do amigo em São Paulo.

“Eu me inscrevi no Festival da TV Cultura e da TV Tupi e pedi para o Itamar fazer arranjos. Lembro que na mesma época ele também tocou percussão pro Jorge Mautner e fez algum trabalho com o Tom Zé. Depois disso, ele ganhou o segundo lugar em um festival da Vila Madalena com a música Nego Dito. Quando montei a banda Sabor de Veneno, ele se apresentava nas aberturas dos nossos shows. Sempre estivemos muito próximos. Até que ele gravou o disco o convidei para que ele passou a abrir os shows da banda Sabor de Veneno que eu havia montado até que gravou o disco Beleleu, Leleu, Eu [1980] e passou a fazer trabalhos paralelos”, relata Arrigo.

Na avaliação dele, a obra de Itamar passou a ser reconhecida pela novidade que trazia. “O Itamar começa um negócio novo. Como eu já disse uma vez, o Itamar seria um Jorge Bem noturno por sua capacidade de comunicação. Ele ficava irritado quando se dizia que a música dele era experimental. Acho que ele é um dos últimos grandes autores de canção. A partir dos anos 80 ele começa a ter um contato mais forte com o [Paulo] Leminski e com a Alice Ruiz. E aí ele descobre o lirismo e começa a produzir umas canções maravilhosas", afirma.

DIVISOR DE ÁGUAS

Robinson Borba: "Continua sendo original o tipo de música que os Itamar fazia, misturando palavra cantada com um ritmo ligado ao reggae e à música brasileira"
Robinson Borba: "Continua sendo original o tipo de música que os Itamar fazia, misturando palavra cantada com um ritmo ligado ao reggae e à música brasileira" | Foto: Ricardo Chicarelli/ Arquivo Folha - 2017

Produtor do disco “Clara Crocodilo”, o álbum mais aclamado de Arrigo Barnabé, o músico e compositor Robinson Borba afirma que a obra de Itamar Assumpção é um divisor de águas na história da música popular brasileira. “Sua música é original e muito diferente de tudo que rolava. E continua sendo uma grande originalidade o tipo de música que ele fazia misturando palavra cantada com um ritmo ligado ao reggae e à música brasileira, como o baião. Lembrando que a sua cor a sua negritude mais do que nas palavras estava na música o que ele representava”, conclui sobre o artista que gravou nove álbuns entre os anos 1980 e 1998.