Falar da trajetória do hip hop é contar a história de um jovem adulto: já viveu tempo o bastante para acumular bagagem, desenvolveu maturidade, mas ainda há muita vida pela frente. No país que é seu berço, os Estados Unidos, ele completou meia década em agosto. Em solo brasileiro está na casa dos 40 anos. E, em Londrina, à flor da idade dos 30, é possível perceber a vitalidade e energia das mãos (e vozes) sedentas em embelezar e construir a história deste jovem rebelde com causa.

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O movimento hip hop é composto a partir dos elementos breakdance, grafitti, DJ e MC (mestre de cerimônia), sendo a união dos dois últimos o que constitui o rap - ritmo e poesia. Produto das margens, da ‘’quebrada’’, o rap potencializa a expressão da periferia por meio das rimas e palavras, com batidas eletrônicas, orgânicas ou à capella. É a representação mais potente do movimento em território pé-vermelho, e começou a dar seus primeiros passos por aqui em meados dos anos 1990.

‘’Comecei no movimento em 1996, e na época não existia o poder da internet que facilita muita coisa hoje em dia. Era um tempo em que o acesso vinha pelas rádios e revistas’’, relata Washington Luis dos Santos, ou WMC, um dos pioneiros do hip hop na cidade e organizador da Batalha da Concha. Sob influência do irmão mais velho, ele começou a se interessar pelo breakdance na praça do Jardim São Lourenço, na zona sul, onde os adolescentes da época se reuniam. ‘’O tapete era um papelão de geladeira com um pequeno rádio conectado à energia elétrica do poste’’, detalha o cenário do ambiente onde começou a se interessar, também, pelo rap.

A 3ª edição da Batalha da Concha, em meados de 2009, ocorreu no cercadinho lateral da Praça 1º de Maio
A 3ª edição da Batalha da Concha, em meados de 2009, ocorreu no cercadinho lateral da Praça 1º de Maio | Foto: WMC/Arquivo

‘’Nós víamos alguns amigos na roda de break improvisando, falando sobre a pipa no céu, o cachorro que passava… dava para ver que era na hora, e na época, isso era inacreditável! Eu pensava ‘como ele têm tantas palavras na cabeça?’’, detalha, desbloqueando a memória do que o fez começar a se interessar pelas músicas, pelas batidas e o swing do rap.

Em um passado não tão distante, WMC explica que um passo importante deste circuito cultural em Londrina foi o evento Expressão Hip Hop, realizado no Jardim Santa Fé, em 2002. ‘’Veio um cara de Brasília chamado KSK que começou a movimentar a cena, mostrar novidades e dar oportunidade para pessoas que começavam a escrever e cantar rap. Foi uma forma da periferia começar a se expressar mais, além de ser uma maneira de nós, do norte do Paraná, conhecermos outros grupos de rap que só víamos na revista’’, relembra o agente cultural. À época, os organizadores do evento estimavam a existência de 20 grupos do gênero na cidade. Vinte e um anos depois, fazer essa conta já é mais difícil.

Confira um registro do evento Expressão Hip Hop (2002):

ORQUESTRA DA RUA

Pulamos para 2008. As rodas culturais cresceram e se expandiram para diferentes áreas da cidade, sempre entre amigos e sem muitas regras. Neste contexto surge a Batalha da Concha, referência entre as batalhas de rima de Londrina, que completou 15 anos em 2023. A ideia inicial era treinar a improvisação dos versos - de freestyle ou estilo livre - para os duelos e batalhas que ocorriam na cidade de São Paulo, berço do movimento no país, na Batalha da Santa Cruz, origem do hip hop paulistano.

As reuniões e treinos que aconteciam nos arredores da Concha Acústica começaram a ganhar grande proporção em pouco tempo até passarem a contar, mais tarde, com o patrocínio do Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura). No dia 1 de maio de 2008, WMC e seus parceiros pediram autorização da CMTU para utilizar oficialmente o espaço como Batalha da Concha. ‘’Documentamos a Batalha naquele feriado e para nós foi um marco, porém, nós não utilizamos ainda o palco da estrutura, usávamos a lateral em cima do banquinho: sem microfone, caixa de som, era à capella’’, detalha. Com o tempo, a organização conseguiu a autorização para utilizar o palco com um megafone´.

Entre triunfos e repressões, a Batalha da Concha é um marco do movimento hip hop em Londrina
Entre triunfos e repressões, a Batalha da Concha é um marco do movimento hip hop em Londrina | Foto: WMC/Arquivo

Depois, o megafone já não era suficiente e foi necessário uma estrutura maior para comportar o grande evento que a Batalha da Concha se tornou, e com uma feliz coincidência: ‘’em 2010 descobrimos que a praça onde fica a Concha Acústica se chama Praça Primeiro de Maio, ou seja, nós marcamos oficialmente a Batalha na data que faz referência ao nome do local’’, celebra.

Mas nem tudo é alegria. Em 2017, a presença do movimento - fundamentalmente periférico - na região causava bastante incômodo aos moradores que moram ao redor do espaço. Diante de alguns conflitos, foi acordado em instâncias institucionais e jurídicas que a Batalha da Concha se deslocaria para o Anfiteatro do Zerão, onde está até hoje.

Entre sorrisos e lágrimas, a Batalha da Concha formou muitos MCs, beatmakers, DJs e grupos que solidificam uma rede de batalhas descentralizadas que ocorrem na cidade de Londrina todos os dias. Atualmente são dez: a Batalha 1312, Batalha do Café, Batalha da Concha, Batalha do Cinco, Batalha do Galo, Batalha do Hemp, Batalha da Leste, Batalha da Máfia, Batalha da Praça, Batalha UDV, contemplando todos os pontos cardeais da cidade. Três rodas culturais a mais do que no mesmo período de 2022.

Edição junina da Batalha da Leste, que com pouco mais de 1 ano de existência, mobiliza jovens de todas as regiões
Edição junina da Batalha da Leste, que com pouco mais de 1 ano de existência, mobiliza jovens de todas as regiões | Foto: Viva Foto/ Divulgação

‘’Rima e cultura para todes que querem criar e existir ocupando um espaço que abrace’’, ‘’um espaço para além de uma ‘batalha’, é para estar entre amigos, se sentir acolhido e livre’’, se descreve a Batalha da Máfia e a Batalha 1312, respectivamente. Lideradas por jovens e sem auxílio público ou privado, o circuito do hip hop pé vermelho se mantém pela vontade enraizada desde seus primórdios: a de se expressar.

Imagem ilustrativa da imagem Hip hop de Londrina aos 30 anos: uma trajetória potente
| Foto: Folha Arte/Gustavo Padial

Um trabalho que ganha força, também, pelas redes sociais. A organização da Batalha da Leste, por exemplo, compartilha trechos das batalhas no Tik Tok e acumula mais de 6 milhões de visualizações nos vídeos. Se cada canto da cidade tem uma batalha para chamar de sua, com a internet é possível multiplicar informações, arte e a ideia dos talentosos artistas do hip hop londrinense.

Confira um dos vídeos publicados pela Batalha da Leste

@batalhadalestelondrina tá maluco 🔥 o brabo @hsofficiall deixou uns versos na leste esse domingo, sai essa semana no canal ‼️ -Siga: @batalhadalestelondrina 🔥 #batalhaderima #rap #hiphop ♬ som original - BATALHA DA LESTE LONDRINA

MINHA E SUA, DELAS, A RUA É ‘NÓIS’

‘’[A batalha de rima] é um ambiente predominantemente masculino, então a intenção é criar um espaço confortável para que outras pessoas também possam se expressar’’, relata Giovanna Martins, artista de 18 anos, que começou a rimar em Londrina no início de 2023. Ela participa do coletivo Treino Delxs, reunião realizada todos os domingos às 16h30 da tarde, antes da Batalha da Leste, e que tem por objetivo promover segurança para que mulheres cis, transexuais e pessoas não-binárias desenvolvam suas rimas, treinem e conversem. ‘’Se trata de acolhimento, somos uma rede de apoio acima de um treino’’, conta Martins, que teve o colo duplo do hip hop: o primeiro das letras que geram identificação em momentos difíceis e o segundo, em suas parceiras e amigas de treino. ‘’Às vezes eu pedia ajuda e não era vista, ele me acolhia. É um sentimento de ‘pô, talvez eu não esteja sozinha’’, completa.

O depoimento de Giovanna consolida a intenção de Luli Karoline, artista independente que articulou o Treino Delxs. Rodeada de homens que já tinham começado nas rimas há muito tempo, surgiu para ela a necessidade de poder errar sem medo e julgamentos, até porque, o substantivo ‘batalha’ já explica que o caminho não é fácil. ‘’Pensei na ideia, postei na minha rede social e apareceram seis meninas no Zerão, no nosso primeiro encontro. Começamos fazendo freestyle, uma rodinha pequena, cada uma rimava seis ou oito versos. Hoje nós já somos quase 20 participantes treinando diferentes modalidades, ataques e respostas, flow, métrica e mais’’, explica.

O Treino Delxs é um espaço criado para que mulheres cis,  trans e pessoas não-binárias sintam-se confortáveis nas batalhas
O Treino Delxs é um espaço criado para que mulheres cis, trans e pessoas não-binárias sintam-se confortáveis nas batalhas | Foto: Divulgação

‘’No treino, nós criamos condições de falar. E olha, do começo do ano para cá, muita coisa mudou! São mais rostos, mais histórias para serem contadas e, principalmente, escutadas! Mais do que escutar, sentir’’, detalha Giovanna sobre este coletivo, que se mantém agarradas em seu próprio potencial, na mensagem do rap e no suporte que uma pode proporcionar a outra e completa: ‘’A gente vê na prática que se a gente se unir, a gente chega longe’’.