Rio, 21 (AE) - As fotos que documentaram a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, feitas pelo americano Dana Merril, serão mostradas ao público, pela primeira vez, a partir da quinta-feira (27), na exposição "Trilhos e Sonhos", no saguão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no Rio. São cerca de 60 fotografias, escolhidas entre pouco mais de cem negativos do acervo Museu Paulista da Universidade de São Paulo (antigo Museu do Ipiranga), que revelam como viveram e trabalharam os homens e mulheres que tentaram abrir o primeiro caminho artificial na Amazônia.
A construção da Madeira-Mamoré, embora fracassada, é uma epopéia que já mereceu reportagens e estudos acadêmicos, além de um romance, "Mad Maria", de Márcio de Souza. A estrada de ferro, com 400 quilômetros margeando os dois afluentes do Amazonas que lhe dão o nome, ligaria o povoado de Santo Antônio, próximo a Porto Velho, capital de Rondônia, a Guarajá-Mirim, na fronteira do mesmo Estado (na época território federal) com a Bolívia. Desse modo, escoaria a produção de borracha, então reponsável por 40% das exportações brasileiras e pelo período de maior riqueza da região.
A idéia da estrada vinha do Império e houve algumas tentativas, tímidas e infrutíferas, de construí-la nos primeiros anos deste século. Mas só em 1909, quando a empresa norte-americana Madeira-Mamoré Railway Company foi criada para explorá-la por 60 anos, a obra começou de fato. Merril era o fotógrafo encarregado de documentar o trabalho, costume que perdura até hoje nas grandes empreitadas. Ele chegou no mesmo ano, mas não se contentou em registrar em negativos de vidro só os operários e máquinas em ação. Fotografou também a floresta antes e depois da passagem da obra e o cotidiano de seus construtores, dos peões aos engenheiros responsáveis.
"Merril era um fotógrafo incomum", diz o fotógrafo Pedro Ribeiro, um dos curadores da mostra, no catálogo da exposição. "Suas imagens sugerem que o fotógrafo se lançava ao ponto de vista que melhor traduzisse a sensação que lhe tomava, mesmo que para tanto tivesse que descer em valetas, subir em andaimes, entrar na lama, fotografar dentro de barcos ou do alto de vagões e árvores". Segundo Pedro Ribeiro esses procedimentos
comuns hoje em dia, eram inusitados na época e serviram para mostrar o que aconteceu com a fracassada epopéia.
A estrada chegou a entrar em funcionamento na segunda década deste século, mas ao custo da vida de mais de um quarto dos 21 mil trabalhadores empenhados na tarefa. A maioria era formada de brasileiros, mas vieram migrantes e aventureiros de todos os lados e todos foram derrotados pela inclemência do clima tropical, pelas doenças por ele causadas e pelas dificuldades de acesso e comunicação com o resto do mundo. As fotos de Merril, geralmente panorâmicas, mostram os cenários em que se dava essa luta contra a natureza, mas ele também registrou cenas domésticas dos envolvidos.
Merril foi embora em 1910 e a estrada praticamente caiu no esquecimento após a 1.ª Guerra Mundial (1914-1918), quando a borracha amazônica ficou mais cara que a produzida na ásia. As fotos de Dana Merril só reapareceram em São Paulo, nos anos 50, não se sabe como. Foram compradas pelo fotógrafo Manoel Rodrigues Ferreira, que as conservou até o ano passado, embora sem condições de guardar adequadamente os negativos. Feito em material frágil e altamente inflamável, só ficaram em segurança no Museu Paulista da USP, quando foram doadas, por meio da Lei Rouanet, pelo BNDES. Segundo Pedro Ribeiro, a doação só aconteceu com a publicação, no jornal "O Estado de S.Paulo", de uma reportagem sobre as fotos.
O museu, que guarda ainda o acervo de várias famílias paulistas e do inventor Santos Dumont, especializou-se em história do imaginário, do cotidiano social e do universo do trabalho. A especialista em iconografia do museu, Vânia Carvalho
acredita que só uma pequena parte das fotos produzidas por Merril chegou até nós. "Algumas fotos têm uma numeração que chega a quatro dígitos, mas nós temos pouco mais de cem negativos", explica ela. Não se sabe o destino das outras, provavelmente vendidas como sucata, tal como ocorreu com os arquivos da Madeira-Mamoré. "Dividimos a exposição em temas, o cotidiano, os trabalhos, a floresta, para dar idéia da totalidade da obra de Merril".
Dos quase 400 quilômetros de ferrovia construídos, só restam 7, entre Santo Antônio e Salto do Teotônio, hoje explorados pelo turismo. A borracha perdeu totalmente seu valor de mercado, enquanto a tentativa de domar a floresta e atravessá-la caiu no no esquecimento e dela quase não há registro na história oficial. Sobraram as fotos de Dana Merril para contar essa aventura. (B.C.S.)