Forest Whitaker é o matador competente mas um tanto infantilizado de "Ghost Dog", que estréia amanhã
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quinta-feira, 03 de fevereiro de 2000
Por Luiz Zanin Oricchio
São Paulo, 03 (AE) - Um matador calmo, sistemático, sábio. Assim é o protagonista de "Ghost Dog" (Forest Whitaker)
de Jim Jarmusch. Claro, inspirado em "Samurai", de Jean-Pierre Melville, este estrelado por Alain Delon. Melville é a precisão cinematográfica. Planos calculados, econômicos, tudo enxuto. Jarmusch também é minimalista, mas representa o multiculturalismo, a mistura racial e cognitiva, própria de quem foi o pai de todos os cineastas independentes. Mas, em que pese as diferenças de estilo e ênfase, as histórias seguem rumos muito parecidos.
Ghost Dog é o nome de um matador que vive numa cobertura em companhia dos seus pombos-correio. É por meio deles que se comunica com o mundo. Segue rigidamente um código de conduta herdado dos samurais. Segundo a antiga escrita japonesa, todo samurai deve obediência irrestrita ao seu senhor. No caso de Ghost Dog, a um capo a quem deve a vida. A trama é mínima, porque logo o caçador se torna caça e irá empregar todo o seu talento para escapar com vida. Pelo menos até o momento em que julgar que já não vale mais a pena.
O resto é estilo. Jarmusch parece acreditar que o interesse cresce a um certo estranhamento. Por exemplo: cria contraponto entre práticas ultrapassadas e alta tecnologia. Em plena época da Internet, Whitaker, em vez de mandar um e-mail, envia um pombo-correio. Tem lá suas vantagens. Não há hacker para interceptar a mensagem. Mas a incontinência intestinal dos bichos produz uma verdadeira inflação de adubo no quintal da casa de Ghost Dog. Este senhor antiquado é o mesmo que usa alta tecnologia para furtar os carros que usa em suas ações. E seu armamento também é da pesada. Tão sofisticado quanto o do crime organizado brasileiro. Humanizando assassinos - Outro contraste: o criminoso cruel sujeita-se ao velho "Bushido", o rígido e moralista código de honra dos antigos samurais. Parece mais uma tentativa de humanizar assassinos. Não seria a primeira nem a última. A um artigo a respeitos de "O Poderoso Chefão", de Francis Ford Coppola, o escritor (e também crítico de cinema) Alberto Moravia deu o título de "No Fundo Eles São Bons". Uma ironia do grande escritor, que, como todos seus compatriotas, vivia exausto pelo crime organizado em seu país e não tinha a menor paciência com a glamourização da Máfia desenhada por Coppola, Marlon Brando, Al Pacino & Cia. Mesmo assim, reconhecia a qualidade do filme.
Há outros casos, como o Scorsese de "Os Bons Companheiros", e aqui entre nós, "Os Matadores", de Beto Brant. Todos eles humanizam gente que não prima exatamente pelo respeito aos direitos humanos. Há outras coisas a ver em "Ghost Dog" e que o separam de "O Poderoso Chefão" e outros filmes do gênero gângster. Jarmusch trabalha exatamente no sentido de desconstruí-lo, como já fizera com Dead Man em relação ao faroeste. Subverte regras internas do formato, mostrando um profissional do crime competente, porém um tanto infantilizado, que acaba sucumbindo à sua total inadequação ao mundo em que vive.
Mas "Ghost Dog" não é apenas isso. Divertido, envolvente, elegante, porém longe de ser um dos melhores trabalhos de Jarmusch, ainda assim traz a marca do seu diretor - um permanente elogio à diversidade cultural. O matador é um negro, que convive com ítalos-americanos e se entende muito bem com um sorveteiro antilhano que não fala uma única palavra de inglês. Como Jarmusch tem dito com frequência, a América é um melting pot cultural, um país formado de agregados de outros países, como aliás, é também o caso do Brasil.
Esse amor pela mistura racial aparece como força motriz de filmes tão diferentes como "Daunbailó", "Estranhos no Paraíso", "Uma Noite sobre a Terra", "Dead Man" e, claro, "Ghost Dog". Ao contrário dos anteriores, no entanto, "Ghost Dog" não deixa de decepcionar, em especial pela maneira como Jarmusch conduz a história. A não ser que se pense o cinema como exercício formalista em estado puro, o conteúdo e suas consequências também devem ter algum valor. Assim, o artificialismo do personagem criado salta à vista e impede que o espectador se identifique com ele de maneira mais completa. E isso a despeito da atuação de Whitaker, um ator talentoso - basta lembrar do seu Charlie Parker em "Bird", ou do ambíguo personagem de "Traídos pelo Desejo", de Neil Jordan.
É aquele tipo de filme que consegue divertir a platéia e tornar bem evidentes as suas qualidades, como se o seu diretor fizesse questão de sublinhar que não faz parte da média, do mainstream comercial. No entanto, deixa um resto de insatisfação ao final. De Jim Jarmusch sempre se espera um algo a mais, que desta vez não veio.