Na próxima sexta-feira (3), o professor Silvio Demétrio, do Departamento de Comunicação Social da UEL - Universidade Estadual de Londrina - passa a assinar uma coluna semanal, no site da FOLHA, sobre arte e cultura.

Demétrio trabalha com jornalismo cultural e já colaborou com publicações de circulação nacional como a Revista Cult, Revista da USP, Brasileiros e Revista da Livraria Cultura, entre outras. Doutor em comunicação pela ECA-USP, sua tese foi sobre jornalismo e contracultura.

Na sequência, leia a entrevista na qual ele fala sobre o conteúdo da coluna que se chamará Dobra.

Você vai escrever uma coluna semanal sobre cultura para a Folha de Londrina. De que cultura você quer falar?

A cultura é acontecimento. Singularidade que se expressa e perpassa o humano. A capacidade de criar. Superar infinitamente o que está dado. É uma noção de cultura que é essencialmente moderna. E Londrina é por vocação uma cidade moderna. Progressista. Aberta. Londrina é uma Dobra no espaço e no tempo. Heterotopia. Lugar da diferença. A bênção Arrigo Barnabé, Grupo Proteu, Janete El Haouli, Sidney Giovenazzi, Rodrigo Garcia Lopes, Mário Bortolotto, Maurício Arruda Mendonça, Cláudio Francisco da Costa, Tony Hara, o Grafatório e tantos outros lugares, figuras e coisas singulares de Londrina. A lista inteira seria imensa. E ainda tem os nomes que passaram por aqui em algum momento. Quem vê o Teatro Ouro Verde tem que se saber que ali já se apresentaram nomes como Astor Piazolla e Kazuo Ohno. Que Londrina nunca deixe de ser uma paixão alegre. Pensei muito num nome que pudesse sintetizar essa resposta para batizar a coluna. Cheguei a Dobra. No sentido deleuziano do termo. Uma linha abstrata que se forma pelo vértice no qual as implicações sustentam as explicações e vice versa. Em grego arkhé e thelos.

Num momento de alta tecnologia, muita informação circulando em redes e hiperconectividade, qual a importância de se fazer uma interrelação cultural entre música e cinema ou fotografia e literatura, para se criar um jornalismo de referências e não apenas de informação volátil?

A linguagem é o instrumento fundamental do jornalismo, um certo uso da linguagem. Daí que eu gosto muito da definição de linguagem de um autor russo chamado Yuri Lotman, que diz que linguagem é a somatória de um código + história. Jornalismo trabalha nessa dimensão do encontro dos códigos com a historicidade. É sempre uma questão de valoração. Criamos hierarquizações de ideias e assuntos sobre os temas em relação aos quais nos debruçamos. É isso que constitui o que disponibilizamos para nossos leitores-internautas: nesse cipoal de signos indicamos caminhos mais precisos para que os códigos que estão disponíveis se encontrem com a história de cada um, formulando assim sentido. Um acúmulo excessivo de informação por si só não constitui sentido. Nos modos de semiotização da cultura é necessário o corte histórico. Daí a importância de “dobrar”, de se desdobrar as interrelações entre uma peça musical e uma fotografia, entre uma pintura e a estrutura de um romance. Quando aproximamos essas coisas geramos um atrito que produz uma faísca, um insight. É assim que nasce uma referência.

Olhando para o Brasil hoje, você diria que existem movimentos de cultura alternativa?

Não invisto muito as minhas forças nesse termo “alternativo”. Ele domestica as singularidades. As cerca e as transforma em rebanho. As coloca todas para comer no mesmo cocho. Quando se nomeia algo como alternativo você diminui a aceleração, perde a velocidade. Sedentariza. Gosto muito da palavra “movimento”, que vai exatamente na direção contrária. O Brasil é uma força motriz nesse sentido. Porque tudo se movimenta, continuamente. Nada pode ser mais letal para o Brasil e sua cultura do que essa sabotagem da nossa ginga por um espírito de rebanho. Fazer cultura no Brasil já é ser imediatamente “alternativo”, porque muita coisa joga contra. Tudo que é cultura por aqui é fruto, em alguma medida, de um espírito que resiste. Da capoeira a um romance do Fernando Bonassi.

O Brasil, como outros países, viveu um momento cultural intenso nos anos 1970. Você diria que foi por imitação ou o país apresentou vertentes genuínas de contracultura num momento de oposição política ao regime militar?

Acho que foi algo muito espontâneo e verdadeiro. Tem gente que veio de fora para estudar exatamente essa resposta que o Brasil elaborou nesse momento em particular no terreno de uma cultura de contestação. É o caso do pesquisador americano Christopher Dunn que vê um teor contracultural singular no movimento do tropicalismo. E não para por aí, nosso cinema marginal alçou voos estratosféricos sob os olhares de Bressane, Sganzerla e Tonacci. A figura de Hélio Oiticica e Cildo Meireles nas artes plásticas. É um panteão de divindades todas contraculturais.

Na sua opinião, qual o papel do rap e do funk na cultura nacional?

Crucial. Veja só o que aconteceu em certa medida com o rock nacional. A triste figura do Lobão por exemplo. O rock perdeu-se como projeto coletivo. Isso não quer dizer que não rolem coisas consistentes nesse recorte, mas muito da força de questionamento e de proposta de novos modos de vida não habita mais o que se tornou em muitos casos um eterno plágio de si mesmo. No contexto do funk o que rola é a alma do povo e isso nunca pode ser perdido. Algo passa por aí nesse momento. O que é ainda mais sintomático com o rap. É ali que algo está sendo dito. Gosto muito do Edgar Perere, por exemplo. Algo novo. Ar fresco que é pra gente não sufocar.

No Brasil, a poesia e a música tiveram papéis importantes no espectro da cultura alternativa? Quem ou o que você destacaria?

Quando deram o Nobel de literatura para o Dylan finalmente se instituiu e se selou a canção como um desdobramento da poesia. Nesse sentido tivemos uma produção caudalosa. Jorge Mautner é alguém que merece um olhar mais generoso sobre sua produção. É claro que Caetano, Gil, Chico Buarque, Jards Macalé também estão todos nessa barca do sol. É que a letra de uma canção é um torpedo supersônico que explode sentidos em massa. Se era assim nos anos 60 e 70, imagina agora com a convergência digital e o nível de interatividade que está à disposição das novas gerações.

Você acha que hoje temos expoentes tão importantes quanto Waly Salomão ou Paulo Leminski como provocadores de uma rebelião cultural?

Waly era uma figura solar. Leminski também. E o sol sempre renasce. Os céus são outros, mas o calor e a luz sempre estão aí alimentando a vida. O papel da crítica é monitorar de onde está vindo esse calor e essa luz agora. E ela está aí espalhada em vários momentos e direções. Daqui a pouco ela ganha um rosto.

Que futuro você vislumbra para a arte e a cultura brasileira?

Um antídoto contra o embotamento dos corações e mentes. Aqui em Londrina alguém com coragem para terminar as obras esquecidas do nosso Teatro Municipal. Nitis Jacon seria um nome e uma homenagem mais do que justa e bonita para mais essa nova casa do coração pulsante da cultura que se produz em Londrina. Gás e força para assaltos poéticos e um grande maracatu de vilas culturais pipocando em todas as direções. Londrina na rota e no calendário da cultura do país de forma ainda mais consolidada. E que o Brasil nunca mais se entristeça.

...

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link