Nos últimos anos houve uma verdadeira torrente de filmes sobre os perigos e riscos do aborto ilegal, como “Vera Drake”, do ingles Mike Leigh, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre”, da americana Eliza Hittman, e “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, do romeno Cristian Mungiu, para citar três premiados em grandes festivais. Há outros títulos, com menos visibilidade mas não menos importância, embora reduzir essas obras a uma espécie de cinematografia de onda possa ser imprudente, já que o debate sobre o aborto continua tão vibrante, importante e contencioso como sempre.

Basta lembrar os protestos recentes liderados por mulheres em muitas cidades ao redor do mundo no início desta década de 20, após o recrudecimento da repressão. Assim, pode-se concluir que, diante do acirramento dos debates sobre o tema, é preciso sim fazer mais filmes sobre o assunto. Essa importância se reflete no Leão de Ouro, prêmio máximo de Veneza-2021 dado ao francês “O Acontecimento”, de Audrey Diwan, com lançamento no Cine Ouro Verde na próxima segunda-feira (3).

“L'Événement” (título original), segundo longa-metragem de Audrey Diwan, é baseado nas memórias de Annie Ernaux, que escreveu sobre sua própria experiência ocorrida há mais de 60 anos, quando tentou fazer um aborto então considerado ilegal na França . A diretora Diwan escolheu um lugar (a França) e um tempo (o início dos anos 1960) para contar a história de uma jovem estudante que é forçada por uma gravidez inesperada a percorrer um caminho tortuoso.

Na França, o aborto foi descriminalizado em meados da década de 1975, e a história se agrava com o crescimento da clandestinidade. As três ideias que a realizadora maneja são o enorme peso que esta gravidez exerce sobre a jovem, em cujo presente e futuro imediato a maternidade é inconcebível, as dificuldades que tem para canalizar e resolver um problema que cresce a cada dia e, principalmente, a incompreensão ao seu redor e a solidão absoluta em que se encontra. Nem sua família, nem seus amigos, nem, é claro, seu parceiro ocasional mostram a ela mais do que as costas. É um filme, portanto, sobre as dificuldades de reparar o erro de uma gravidez. Mas sobretudo é um filme sobre exclusão, cancelamento (aquilo que está tão em moda e tão visto e ouvido agora) e o risco de ficar fora da linha.

Audrey Diwan orienta bem o dramático de sua persoangem (sua gradual solidão) e o sórdido de seu percurso pela medicina oficial, pela opção clandestina e, principalmente, orienta bem sua câmera, que deve equilibrar a dureza de suas imagens com um uso bem-sucedido de fora de campo. Os momentos mais difíceis produzem um revirar de olhos – apesar dos cortes na câmera e na montagem, a impressão é formidável e espantosa mesmo assim. Já a atriz Anamaria Vartolomei e sua interpretação estupenda valem para conhecer a história da personagem. E que história é essa? Anne quer estudar. Quer ser uma mulher independente. “Quero ter um filho mais tarde, mas não quero ter um filho agora em vez de uma vida”, diz ela. Ela sabe que o aborto é a única solução. Mesmo que seja clandestino, mesmo que tenha que pagar com a morte. Diwan constrói essa busca cega como um thriller. E a cúmplice colaboração da diretora e de sua atriz produz um drama envolvente e atmosférico, com pungente relevância contemporânea obtida também pela eleição de uma estética moderna.