Há duas semanas, o assunto aqui foi o penúltimo filme de Steven Soderbergh, “Let Them Talk”, uma história de vidas num cruzeiro luxuoso com uma pegada existencial. Bem, hoje está aqui o mais recente objeto de estima da fidelidade cinéfila, uma pequena joia lapidada à moda Soderbergh. Ele é um daqueles diretores que quase não existem mais porque consegue se entrincheirar com conforto no fluxo principal da produção sem fazer parte da grande indústria gerenciada pelos oligarcas de marketing dos estúdios, produtoras ou serviços de streaming, optando, durante três longas décadas desde sua maravilhosa estreia com “Sexo, Mentiras e Video Tape” , por sentir-se livre para experimentar em nível formal e acima de tudo para misturar gêneros, estilos e registros de maneira única (como fez na refilmagem de “Onze Homens e um Segredo”, divertido mas inócuo entretenimento).

A ponto de sua carreira ser uma das mais interessantes dos Estados Unidos, pelo fato de nunca se saber o que o homem pode realizar a seguir nessa sua aposta pela heterogeneidade que faz o cinema ir sempre adiante e diferente – mesmo inserido em ecossistema conservador e emburrecido –, um cinema cheio de referências e citações. “Nem Um Passo em Falso” (No Sudden Move, 2021, à disposição em HBO MAX) nos leva a esquecer suas obras imediatamente recentes carregadas de correção e pouco mais. E o reintroduz e reposiciona naquele grande nível da série de títulos entre 2012 e 2018 (“Distúrbio”, aquele feito com Iphone, “Logan Lucky/Roubo em Familia”, “Behind the Candelabra/Minha Vida com Liberace”, “Efeitos Colaterais” e “Magic Mike”), todas propostas que dão conta da expressiva e inusitada gama do diretor, e de seu hábito saudável de não ficar parado muito tempo no mesmo lugar ou de reduzir sua criação artística ao pastiche pós-moderno flácido e oco de outros diretores, até o extremo de saber adaptar-se a todas as demandas comerciais, produtivas e expositivas do momento sem perder sua idiossincrasia iconoclasta e sua inquietação criadora.

Em “Nem Um Passo em Falso” Soderbergh trabalha com mão de mestre um roteiro muito interessante de Ed Somolon, que lhe permite retornar às suas habituais obsessões temáticas, como corrupção capitalista, vingança, identidade individual na crise, moralidade comunal e aquela dialética de traições superpostas que não deixam ninguém ileso do regime plutocrático, desde as cúpulas asquerosas até os que sobrevivem como podem na imensa base carente da sociedade. Nesta história ambientada na Detroit dos anos 1950, em que gangsteres ordinários e mesquinhos se metem em trama que não era tão simples quanto parecia, aliás bem mais intrincada, Soderbergh usa as engrenagens do policial noir com toques de filme de roubo e sutil comédia sardônica para expor as falcatruas das quatro grandes montadoras dos Estados Unidos da época, General Motors, Ford, Chrysler e American Motors.

Como sempre no caso do diretor, o elenco é extraordinário porque todos os atores se sentem maravilhosos trabalhando com um diretor cuja abordagem tão intrusiva gera performances naturalistas na pratica cinematográfica como raramente acontece hoje, distanciado todos daquela uniformidade interpretativa insuportável e medíocre. O brilho de Don Cheaddle, Benício Del Toro e David Armour é uma preciosidade. Soderbergh também recorre aos antecedentes das varias máfias institucionais e capitalistas encontradas em décadas passadas via “Erin Brockovich” e “Traffic”, dois de seus melhores e mais premiados filmes. Além de suas marcas registradas com a imagem e a edição, duas áreas realmente fundamentais que ele ainda controla por meio de pseudônimos, Peter Andrews para a fotografia e Mary Ann Bernard para montagem. Destacando-se aqui os elegantes movimentos de câmera e o magnífico uso da grande angular (olho de peixe, como é vulgarmente conhecida) para obtenção dos efeitos dramáticos. “No Sudden Move” é muito mais do que exercício de estilo, já que formalmente respeita e responde aos cânones do cinema dos anos 1950 sem fazer grandes malabarismos visuais para agradar plateias contemporâneas.