Em “Um Completo Desconhecido/A Perfect Stranger” - com várias indicações/ estatuetas a considerar para o Oscar do próximo domingo (2) e em lançamento nesta quinta-feira (27) no Brasil, a narrativa genérica transcende o mero exercício biográfico para mergulhar nas notas do impulso criativo. Porque a vida – ou pelo menos parte dela – do músico vencedor do Prémio Nobel de Literatura é uma mera ponte para refletir sobre a liberdade artística e criativa, no seio da indústria do entretenimento.

Porque o filme, baseado no livro “Dylan Goes Electric” de Elijah Wald, mas também com ressonâncias em “Dylan e Cohen. Rock and Roll Poets”, de David Boucher (não traduzido no Brasil), utiliza a chegada de Dylan à fama, a sua posição incômoda desde o início, a perda da inocência e sua posterior redenção, para fazer uma representação de como é difícil preservar a pureza da essência fértil e inovadora no meio da voragem (aquela roda viva que cantava Chico Buarque) de uma cultura pop que procura figuras de proa para causas que se diluem no vácuo do consumo.

A rigor, o filme não pode ser classificado como uma cinebiografia. Dylan - um Timothée Chalamet excepcional, criativamente mimético, que se dilui para dar forma a um Bob genial e discreto - permanece em flertes artísticos e nega sua posição de porta-estandarte de uma geração, pois isso, além de falso, rouba sua liberdade. Parece pouco para uma avaliação crítica , mas no fundo é a alma de uma obra.

O filme não é estritamente musical, e na verdade não é mesmo, embora tenha canções; e é crítico à geração de ruptura utópica : eles veem o músico como um padrão e não avançam se o homem talentoso não der continuidade. Portanto, o longa-metragem trata mais de forma do que de substância. Ao longo da história, vemos desfilando uma série de personagens emblemáticos de uma época : Pete Seeger (Edward Norton), Johnny Cash (Boyd Holbrook), Woody Guthrie (Scoot McNairy) e, claro, Sylvie Russo (Elle Fanning) e Joan Baez (Monica Barbaro) que transitam com certo cinismo na época, com uma aura quase messiânica de Dylan, sem perder sua profunda humanidade.

OS CONFLITOS

O filme, apesar de ter mais de duas horas de duração, nunca parece lento e flui em meio à crise de Dylan para nunca deixar de ser artista. É um trabalho que consegue ir além do temido cosplay cinematográfico ou do karaokê participativo adequado às redes sociais. O que o diretor Mangold está tentando fazer não é montar uma pantomima nostálgica para espalhar Dylan entre as gerações de pessoas com menos de 30 anos que se identificam mais com Chalamet do que com o velho bardo de Minnesota.

O que está na tela é seu retrato, ainda relevante, do conflito entre a pressão social e a expressão pessoal. É um filme que não tenta resolver o mistério do ato criativo, mas sim que o coloca em cena e se dedica a observar o que ele gera à sua volta.

Mangold, que em 2005 dirigiu “Johnny & June” (Passion and Madness) – focando outro ícone musical, Johnny Cash –, aborda aqui o material com a fórmula do neoclassicismo e o recobre com forte formato musical. Ou seja, em mais de uma cena o sentido e a força do que acontece, a essência emocional é dada não tanto pelos diálogos, mas pelas músicas e pelas letras. Curioso é que o protagonista interpreta impecavelmente o primeiro ícone profundo e depois insatisfeito com aquela posição dos anos de ruptura.

“Um Completo Desconhecido” se apoia em dois pilares fundamentais. O primeiro está ligado ao desenvolvimento criativo e profissional de Dylan, à sua ascensão meteórica ao estrelato folk e à criação e gravação dos seus primeiros discos, além das atuações em eventos cada vez mais massivos. E o segundo, a relação com sua primeira companheira estável, Suze Rotolo (no filme o nome foi alterado para Sylvie Russo, provavelmente por razões legais), e o intenso vínculo artístico e afetivo com Joan Baéz, eterna companheira de viagem durante grande parte dos anos 1960 e além. Triângulo que define os três atos do filme e que contém, como se sabe, um grande mistério em seu interior. Porque, como já se tinha perguntado o cineasta Todd Haynes no muito mais experimental e inquieto “Não Estou Lá/I'm Not There”, um verdadeiro puzzle narrativo dedicado ao enigma Dylan: quem é, afinal, este artista impossível de apreender na sua totalidade? Ele é, pelo menos para a minha geração, a dos sixties, aquele completo estranho que, paradoxalmente, é inconfundivelmente familiar.

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