A verdade tem que encontrar sua linguagem para se revelar, seja ela ficção, sexo, direção ou linguagem de sinais. Ou um texto de Anton Chekhov, poderoso catalisador utilizado pelo diretor Ryusuke Hamaguchi, a partir de três contos de Haruki Murakami presentes no livro “Homens sem Mulheres”, para compor um filme prodigioso sobre redenção e isolamento. Em segunda semana de exibição na cidade, “Drive My Car” é um drama que tem como personagem principal Yūsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), renomado ator e diretor de teatro que, após renúncias difíceis e perdas pessoais, é convidado por um festival de teatro em Hiroshima.

Ali, durante dois meses, prepara a encenação da peça “Tio Vanya”, de Chekhov, trabalhando uma montagem original dele e de sua falecida esposa Oto, roteirista de televisão (Reika Kirishima), versão multilíngue com atores que dizem seus textos em japonês, mandarim, coreano e até em linguagem de sinais. Contra sua vontade, a direção do festival destina a ele um motorista, Misaki (Toko Mihura), uma jovem garota introvertida que se torna testemunha de suas rotinas rígidas e às vezes insanas.

.
. | Foto: Divulgação

Em “Drive My Car” são os laços que unem os protagonistas. Aqui encontramos, em três horas, um universo humano multifacetado. Na tela, quase imperceptível, ocorre a transformação. É preciso estar atento e paciente – qualidades cada vez mais inusitadas – para descobrir a essência desta adaptação dirigida por Ryosuke Hamaguchi, um dos prodigiosos cineastas da cinematografia japonesa, partindo da simbiose de três contos de um dos autores japoneses mais internacionais, Haruki Murakami, eternamente injustiçado candidato ao Nobel de Literatura. Inusitada também é a sutileza – para que o espectador não ouse não entender alguma coisa – de uma narração que poderia parecer improvisada, na qual é difícil detectar as camadas de um roteiro premiado ano passado em Cannes.

Para começar, a surpresa de um prólogo de 40 minutos, tempo necessário para entender um protagonista enclausurado em algumas fitas de áudio que ele ouve no carro. (Também é surpreendente que, na capital do cinema industrial, tenham

reconhecido esta proposta íntima e delicada, um cinema em perigo de extinção, com o Globo de Ouro de melhor filme de língua não inglesa e com quatro nominações ao Oscar.)

Além de roteirista, ela, Oto, também gosta de contar histórias eróticas após o orgasmo. Mas este casal deixa de existir com a súbita morte dela devido a uma hemorragia cerebral. E é aí que começa a segunda parte “Drive My Car”, com o luto do protagonista, que decidiu trabalhar a versão multilíngue de “Vanya”, de Chekhov.

Nada do que acontece no filme acontece como planejado. Nada pode ser antecipado e a narrativa flui livremente, sem restrições. Não há estereótipos ou lugares comuns. Tudo é surpreendente e, ainda assim, natural. Hamaguchi retém a beleza do cotidiano, da calmaria, sem alardes nem altas paixões.

Todos os protagonistas de “Drive My Car”, presentes ou ausentes, têm em comum uma dificuldade ou ausência que os impede de se comunicar. E eles tentam solucionar isso de várias maneiras. Assim faz Yusuke, que revê o texto de “Vanya” no carro, dando respostas mecânicas e obsessivas às frases que sua mulher gravou em fita cassete.

Misaki, a jovem motorista, acompanha o diálogo fictício durante as idas e vindas, tentando se misturar à estrada e não ser notada enquanto ele recita. No pequeno espaço de um Saab 900 turbo vermelho dos anos 80 com teto solar, diretor e motorista forjam uma intimidade sutil, enquanto o texto de Chekhov questiona Kafuku sobre fidelidade, amor, fracasso e solidão, e as frases da peça ressoam dentro dele como um eco perfeito de sua vida. É essa capacidade de entrelaçar a realidade de seus personagens com o processo criativo que realizam que faz do filme algo extraordinário. E é a sutileza e fluidez com que este processo é alcançado que o torna uma obra-prima.

Numa espécie não declarada de epílogo, Hamaguchi coloca esses dois personagens no carro para que, neste espaço estreito, eles revelem as histórias que os levaram até lá, ou seja, o passado que os torna quem são. Mas então ele os retira e se afasta deles em planos gerais que ele também usa elegantemente. Dá a eles, assim, ar para respirar, espaço para pensar e os contextualiza num universo que, apesar de seu drama, não gira em torno só deles. É lá, ao ar livre e no espaço aberto, onde todas as feridas se mostram e ocorre a catarse, que consiste em nada mais do que aceitar a dor como algo genuíno, tentar perdoar o dano. "O que você vai fazer? Você tem que viver!”, dizem Kafuku e Misaki. Também dizem Sonia e seu tio Vanya. "Devemos continuar vivendo."