Um teórico do tempo limitou o cinema a nada mais do que isso: a montagem cria a ilusão de tempo mas, mesmo antes disso, o que é relevante é que a própria imagem é indistinguível do tempo. A frase mais citada deste teórico, o cineasta russo Andrei Tarkovski (1932-1986), afirma ainda que “a autêntica imagem cinematográfica não só vive com o tempo, mas o tempo também vive graças a ela”. Caso contrário, erramos ao não dar a ele, tempo, o valor que merece; corremos o risco de que ele acabe nos desprezando ou, o que é muito mais grave, nos esqueça. Valorizamos pouco o tempo quando exibimos o prazer por coisas que nos fazem esquecê-lo. E, no entanto, apesar do nosso desprezo, nada é estranho ao tempo. Somos, basicamente, o que o tempo tem de bom (ou ruim) a ver conosco.

“Vidas Passadas”, em exibição em Londrina e um dos dez títulos na lista de concorrentes ao Oscar de melhor filme este ano, trata do tempo, e não poderia tratar de outra forma mais inspirada. A diretora estreante Celine Song, meio canadense, meio coreana, conta a história de dois amigos – à sua maneira amantes – ao longo de todas as décadas que sentiram falta um do outro, se desejaram, se esqueceram e até chegaram ao ponto de se conhecerem de novo. E eles se amavam. E eles se despediram.

Parece confuso e, na verdade, poucos filmes são tão claros, luminosos, inteligentes. E, convenhamos, tristes. Um dia, Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Yoo Teo), amigos de infância, se separam. A família dela migra para os Estados Unidos. Ele permanece na Coréia do Sul. O tempo passa e ele decide reencontrá-la. As novas tecnologias banalizaram uma empreitada de gigantes: o restabelecimento dos contatos. Eles voltam a conversar, se redescobrem, namoram e se separam. E o tempo passa novamente. E eles se veem novamente. Claro que cada um tem a sua vida completamente separada. Compartilham apenas a memória, que nada mais é do que a vida macerada no tempo, do que poderia ter sido e não foi. E o tempo passa.

Filme compõe um poema sobre o tempo atravessando a vida dos personagens
Filme compõe um poema sobre o tempo atravessando a vida dos personagens | Foto: Divulgação

O QUE SE MOSTRA E ESCONDE

Com elementos mínimos e precisos, Celine Song consegue descrever a viagem perfeita que vai da desolação ao entusiasmo, do desejo à realidade, da esperança de tudo à aceitação submissa de quase nada. Parece que o filme se torna grande não tanto naquilo que mostra, mas em tudo o que esconde, que mal aponta, que simplesmente sussurra. E assim por diante até compor um romance inesquecível e emocionante à exaustão, composto inteiramente no fundo da tela. Em cada palavra dita fica a imensidão de tudo o que ficou por dizer.

Como num conto de Borges, todo o filme é pontuado por sequências memoráveis que funcionam como avisos, como sinais ou, melhor ainda, como relógios. Desde o início em um bar, com um narrador externo que presencia uma cena quase incompreensível de um casal de três até o simples final de dois amantes que não são realmente amantes esperando em silêncio por um Uber: tudo leva a uma melancolia estranha, mas plena, deslumbrante, excessiva. E assim por diante até compor um poema sobre o tempo sem tempo.

O conceito fundamental para a teia discursiva do roteiro – que Nora explica a Arthur/John Magaro , a terceira ponta do triângulo, durante uma bela sequência – é o in-yun, presente na cultura coreana, cuja tese sustenta que somos o amálgama de um moto contínuo de acumulação das vidas que vivemos no passado, passado feito de experiências e possibilidades de outros tempos, de tal forma que um corte transversal revelaria uma infinidade de camadas, de memórias perdidas mas gravadas na pele.

“Vidas Passadas” é um filme sensível, requintado e pessoal. E verdadeiramente memorável.