Sammy (Mateo Zoryon) tem um talento considerável, mas aos oito anos ainda não sabe. Ele descobrirá no primeiro dia em que seu pai Burt (Paul Dano) o levar ao cinema. E você, espectador, você reconhecerá claramente o imenso e radiante ímpeto que

mudará a vida dele para sempre. “Não consigo pensar em nada além de filmes”, diz o pequeno Sammy à sua mãe Mitzi (Michelle Williams).

Filme mostra o encantamento do garoto Spieberg desde que o pai o leva ao cinema pela primeira vez
Filme mostra o encantamento do garoto Spieberg desde que o pai o leva ao cinema pela primeira vez | Foto: Divulgação

A essa altura, ele tenta ao máximo recriar a última grande cena do filme que acabou de ver na tela. Um ponto de partida cativante para a história narrada em “Os Fabelmans”, grande vencedor do Globo de Ouro de melhor drama e direção, em lançamento a partir desta quinta-feira (15) em Londrina.

Na mente de Sammy, tudo são imagens. Tudo é uma espécie de impulso criativo que vai além da curiosidade ou da experimentação. Ele ainda não sabe, mas o menino que Burt levou para ver “o maior de todos os espetáculos” vai dedicar sua vida ao cinema. E também buscar a felicidade, através da linguagem do cinema. É difícil descrever “The Fabelmans”, com sua incrível combinação do elemento biográfico e da ficção.

Especialmente, o cenário híbrido em que seu argumento se move. É claramente sobre a vida de seu diretor –  transformada e adaptada para caber em uma fábula sobre ambição criativa –, mas também é algo mais. Esse ponto de fragmentação é quando se percebe a história como centro de um olhar amplo e bem construído sobre o valor da arte.

Spielberg, consumado veterano em narrar histórias baseadas na maravilha e na importância do humano, encontra em sua própria vida a melhor narração. Desde a primeira cena –  em que a câmera desliza com uma eloquência articulada e plástica –,

“Os Fabelmans” conta uma pequena história destinada a ser grande. Mas não é um relato de feitos fantásticos ou mundos inexplicáveis. O grande e admirável destino de Sammy é a arte. Demonstrar seu inegável talento que deslumbra pelo simples fato de ser maravilhoso. Esta criança que se apaixonou pelo cinema quase de imediato também sabe que a grande tela é uma porta. Mas para onde? É a grande questão que "Os Fabelmans" tenta responder.

Nesta época em que os argumentos do cinema tendem para leituras cínicas, desconstrutivas, de duplo sentido, “Os Fabelmans” é admiravelmente amável. Poderia até ser ingênuo, não fosse o fato de que o roteiro de Spielberg e Tony Kushner é engenhoso o bastante para evitá-lo. Há uma metade cinebiográfica que se aproxima da pura história das experiências apenas quando delas precisa, para depois regressar ao terreno da fábula. A câmera vê os experimentos de Sammy com a imagem como pequenas descobertas de grande importância. Como se fossem maravilhas que acontecem a partir de experimentações fortuitas. “Magia”, diz Sammy, surpreso com a emoção, admiração e espanto de ver as imagens em sua mente representadas no mundo

material. Ele começa a descobrir o verdadeiro potencial da narrativa em imagens e encontra no cinema um espaço de possibilidades gigantescas. Não se trata apenas de filmar, trata-se de criar vida.

“Os Fabelmans” é uma mistura sublime de imagens de beleza pungente e agilidade surpreendentemente flexível. Claro, Spielberg faz aqui mais uma vez o que faz de melhor. A câmera se torna uma intrusa, depois uma testemunha à distância. A paleta de cores varia, torna-se viva quando Sammy descobre a capacidade do cinema de manipular, divertir e fazer chorar. Tudo no filme é uma percepção sobre o belo, sobre a recompensa do criativo. A busca ansiosa pelo sentido da vida e para onde ela nos leva.

“Os Fabelmans” seria uma fábula incompleta sobre o alcance da inteligência e da destreza de Sammy se não contemplasse uma narrativa cuidadosa abrangendo também a vida familiar. As vicissitudes, os silêncios, a forma como seus membros procuram

compreender-se num sentido essencial e emocional. Mas o recado final, o fecho dessa master class de Spielberg é uma dissertação pensada e bem construida sobre a responsabilidade com a arte. O que fazer quando sabemos sem dúvida que nossa vida depende da arte ? Que aquilo que ocorrer no futuro será algo extraordinário e poderoso graças ao talento? Como narrar com imagens pode transformar uma vida?

* Confira a programação de cinema no site da Folha de Londrina.