Filme mostra a guerra no Líbano contando o passado
'Retrato de um Certo Oriente', filmado na Amazônia, se passa no período da Segunda Guerra, mas é absurdamente atual
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sábado, 30 de novembro de 2024
'Retrato de um Certo Oriente', filmado na Amazônia, se passa no período da Segunda Guerra, mas é absurdamente atual
Alesssandra Monterastelli/ Folhapress
RIO DE JANEIRO - Logo na primeira cena de "Retrato de Um Certo Oriente", filme inspirado no livro de Milton Hatoum, Emir entra esbaforido em casa. "Eu quero ir embora do Líbano! Não quero morrer!", implora à sua irmã, Emilie, para convencê-la a deixar o país ameaçado pela guerra, rumo ao Brasil.
A história que se passa em 1949 ficou tragicamente atual. No final de setembro, poucos dias antes da exibição do filme de Marcelo Gomes no Festival do Rio, Israel bombardeou Beirute em mais uma manobra para pressionar o Hezbollah.
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"O que aconteceu em 1948, com os palestinos saindo de sua terra e os libaneses fugindo por causa da guerra, é o que está acontecendo exatamente agora. Parece que não aprendemos nada com a história", diz Gomes.
Ainda que não pudesse prever a explosão do conflito, o diretor queria contar uma história que falasse sobre imigração e intolerância religiosa. Afinal, ele dirigiu "Cinema, Aspirinas e Urubus", que se tornou um clássico do cinema brasileiro nos anos 2000 ao narrar o encontro entre um alemão fugido da segunda guerra e um sertanejo.
"Entender um ponto de vista diferente do seu é um antídoto contra o fanatismo", diz Gomes. Mas quando pediu a Hatoum permissão para adaptar "Relato de um Certo Oriente", o diretor estava também interessado no desafio de contar uma história que, originalmente, é contada por meio do fluxo de consciência dos personagens.
O filme se passa quase que por inteiro em um barco que navega pelo rio Amazonas rumo à Manaus, no qual estão os dois irmãos católicos e Omar, um comerciante muçulmano por quem Emilie se apaixona. O romance dos dois desperta a ira de Emir, ciumento e controlador em relação à irmã. A indígena Anastácia, vivida por Rosa Peixoto, foi uma personagem acrescentada por Gomes à trama.
"Viajamos com Milton [Hatoum] e vi pelo seu olhar Manaus e Belém, que nos anos 1940 eram uma Babel de línguas, com gente de todo lugar do mundo", conta o diretor.
Gravado em preto e branco, o filme remete a um álbum de fotografias antigas que capturaram os sentimentos de perplexidade, angústia e excitação dos estrangeiros, que deixaram uma paisagem árida e montanhosa para se embrenharem em um caminho interminável de água.
A floresta amazônica aparece fértil, cheia de possibilidades para o futuro, mas também densa e assustadora. O cenário monocromático impede, propositalmente, a exotificação da região.
Assim como sua personagem, Emilie, foi a primeira vez que a atriz libanesa Wafa'a Céline Halawi encarou a Amazônia. "Fiquei impressionada com a força do rio, selvagem como um mar, mas sua água é doce. Há uma mistura de selvageria e suavidade", diz ela.
Quase todos os diálogos do filme são em árabe, o que exigiu ensaios em inglês antes das gravações finais. Halawi, Charbel Kamel e Zakaria Kaakour, que interpretam Omar e Emir, foram escolhidos para os papéis após testes no Líbano, antes da pandemia. Na época, o país enfrentava uma crise econômica, lembra Halawi.
Quando as gravações começaram, em 2020, uma enorme explosão aconteceu em Beirute, devido a um material altamente explosivo armazenado no porto. E, na estreia do longa, o Líbano está novamente em guerra.
"O que está acontecendo no Oriente Médio e em Gaza já aconteceu antes na história: pessoas estão sendo desumanizadas", diz Halawi.