“Kaibutsu/Monstro”, do realizador Hirokazu Kore-eda, felizmente alguém precioso a esta altura de sua notável trajetória que o londrinense zeloso acompanhou no Cine Com-Tour/UEL, onze filmes durante as duas primeiras décadas deste século – uma carreira habitualmente associada a temas focados em familias disfuncionais.

Neste seu título mais recente em exibição em Londrina, no Cine Ouro Verde, ele conta uma história sobre aonde se esconde a verdade a partir de três perspectivas diferentes (vamos chamá-lo de o “Rashomon” do novo milênio, uma espécie de nova abordagem da classica obra-prima de Akira Kurosawa, Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1951): primeiro, uma mãe viúva (Sakura Ando) queixa-se às autoridades escolares sobre os maus tratos que seu filho Minato (Soya Kurokawa, nenhum parentesco...) sofreu na escola nas mãos de um professor (Eita Nagayama); a seguir vemos a versão do professor e por fim o foco é no menino e seu melhor amigo, vítima de bullying que provoca todo um penoso mal-entendido.

Filme de Hirokazu Kore-eda,  que dirigiu "Assunto de Família, vencedor da Palma de Ouro em 2018, traz temas como o bullying, os maus tratos e os julgamentos apressados
Filme de Hirokazu Kore-eda, que dirigiu "Assunto de Família, vencedor da Palma de Ouro em 2018, traz temas como o bullying, os maus tratos e os julgamentos apressados | Foto: Divulgação

AMBIGUIDADES

Em seu primeiro filme japonês desde “Assunto de Familia”, vencedor da Palma de Ouro em 2018 (após um trabalho na França e outro na Coréia), Kore-eda tenta nova estratégia narrativa permeada de ambiguidade. Alguns fatos não são imediatamente claros e existem lacunas intencionais nas duas primeiras revelações. Porém, no terceiro segmento, as peças se encaixam, e com uma força emocional muito comovente (o filme, aliás, é dedicado a Ryuichi Sakamoto, autor da eficaz trilha sonora, falecido logo após este seu seu último trabalho para o cinema).

Com um melodrama não exatamente tranquilo mas minuciosamente elaborado, Kore-eda nos leva a um passeio complicado por um curto período da vida de Minato, estudante de 11 anos em uma cidade japonesa sem nome. O filme se baseia no interesse recorrente do diretor sobre disfuncionalidades, e o faz por meio de um roteiro de Yuji Sakamoto (raro exemplo de Kore-eda não escrevendo seu próprio roteiro, o que de certa forma explica o rebuscado da trama), que sempre brinca com a perspectiva, estabelece caminhos e círculos falsos, revendo os mesmos acontecimentos de outros ângulos, nos forçando regularmente a questionar o que já vimos.

Até o título desencadeia um jogo de adivinhação. O monstro em questão é (1) o professor de Minato, Sr. Hori (Nagayama Eita), a quem o menino acusa de intimidá-lo, desencadeando assim um processo interno que mostra a face fria e burocrática do sistema escolar quando a mãe de Minato, Saori (Sakura Ando) , ousa desafiar a instituição ? O monstro é (2) a diretora da escola, de rosto inexpressivo e antipático (Tanaka Yuko), que está se recuperando de uma tragédia em sua vida pessoal ? E o que pensar do (3) colega de classe de Minato, Eri (Hinata Hiiragi), um garoto sonhador, perseguido pelos outros ? Há algumas coisas em “Monster” que talvez não devam ser levadas inteiramente a sério. É claro, também, que fora da escola os dois colegas são amigos e construíram um mundo de faz de conta na floresta perto da cidade, onde se encontram e brincam em um velho vagão abandonado.

Há muito o que pensar, seja nas relações com os pais, nas amizades, nas relações entre professores e alunos, no bullying, nas redes sociais e, de forma mais geral, em como não julgar as pessoas apressadamente (ou como não julgá-las). É intrigante observar as peças dessa história fragmentada emergirem e se combinarem para revelar um todo. Mas uma série de pistas falsas também traz frustrações, e você se pergunta se a mecânica de contar a história desvia um pouco o que é inegavelmente, e acima de tudo, o retrato compassivo de um menino pré-adolescente lutando de várias maneiras para crescer. Este é um ponto seriamente questionável do roteiro.

Mas como seria de esperar de Kore-eda, tudo é contado com o máximo de detalhes e cuidados, e a trilha musical do falecido Ryuichi Sakamoto muito contribui para a atmosfera abrangente de consideração e empatia.