Quando "Get Back", documentário de Peter Jackson sobre os Beatles lançado em 2021 foi anunciado, alguns especialistas e aficionados manifestaram certo ceticismo. As dúvidas, porém, iriam se dissipar por completo ao se constatar a relevância dos episódios.

Algo similar poderia ocorrer diante de mais um produto associado ao álbum musical "Elis & Tom", de 1974: apresentado na programação do festival In-Edit, "Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você" tem força análoga, para a música brasileira, à do filme que mostra os bastidores de "Let It Be".

Utilizando material originalmente filmado em 16 mm durante as sessões de gravação em Los Angeles na época, o documentário dirigido por Roberto de Oliveira —também no festival com a reexibição do documentário "Ovelha Negra", de 2007, sobre Rita Lee - e Jon Tob Azulay mostra a aproximação gradual e oscilante entre os dois artistas de personalidades opostas.

"Só se pode copiar a quem se ama", afirma Tom, citando Stravinsky, ao confessar sua conexão profunda com Villa-Lobos e Ary Barroso. O compositor clássico carioca está, de fato, na medula da sonoridade jobiniana, enquanto o sambista mineiro define uma ideia de canção que - aquém e além da bossa nova - seria sempre perseguida por Tom.

Alguns momentos mais tocantes flagrados pela câmera nos intervalos das gravações são de Jobim ao violão cantando pérolas do repertório de Ary, como "Caco Velho" e "Na Batucada da Vida". Pianista de ofício, Jobim mostra personalidade como violonista: mesmo na informalidade, sua mão esquerda acha sem hesitação os acordes que necessita, e a mão direita exercita uma batida própria, que relê a seu modo o modelo de João Gilberto.

Depoimentos de pessoas envolvidas direta ou indiretamente no projeto são articulados com trechos musicais densos e delicados, e fica evidente a preferência (da própria Elis, em última análise) pelas canções mais dramáticas de Jobim.

André Midani, então presidente da gravadora Philips - e a quem o documentário é dedicado - sintetiza sem idealizações as complexidades humanas e artísticas geradas pelo encontro

"Elis e Tom" é um disco de Elis ou de Tom? Em princípio seria um álbum de Elis e sua banda, tocando composições de Jobim e contando com a sua participação. Mas, por outro lado, se tornaria também um projeto a seu modo capitaneado pelo compositor, que teve 14 de suas canções interpretadas pela mais importante cantora do país.

Gravação do álbum "Tom & Elis," em 1974, teve momentos tensos e emocionantes
Gravação do álbum "Tom & Elis," em 1974, teve momentos tensos e emocionantes | Foto: Divulgação

DIAS TENSOS

Como se sabe, os 18 dias em que o pianista César Camargo Mariano, então casado com Elis, trabalhou nos arranjos, em diálogo com Jobim, foram tensos e penosos, e ela chegou a arrumar as malas para voltar ao Brasil. Por fim, a gravação engrenou.

O filme mostra a progressiva aproximação - em interação cada vez mais sedutora e afetiva - entre cantora e compositor.

Elis não era somente a voz tanto "trágica" como "leve" (nas palavras do crítico Jon Pareles), ou com "densidade, empolgação e sentimento profundo" (na declaração de Wayne Shorter), mas trazia consigo um grupo de músicos extraordinários e entrosados: Hélio Delmiro (guitarra), Oscar Castro Neves (violão), Luizão Maia (baixo) e Paulo Braga (bateria), além do próprio César Camargo Mariano (piano acústico, elétrico e arranjos).

Jobim àquela altura era um dos nomes centrais e mais requisitados da música popular mundial. O disco dividido com Frank Sinatra, de 1967, havia sido o único do cantor dedicado a um único compositor. Segundo Nelson Motta, entretanto, Tom vivia um período de grande amargura.

Toda vez que o espetacular som do álbum surge no documentário predomina sobre qualquer outro elemento cinematográfico. A música se impõe.

Tom arredonda tudo - sua gentileza sonora é brasileira sem ser nacionalista, é moderna e internacional, mas nunca sacrifica a segurança das raízes. E a exuberância de Elis está totalmente a serviço da arte em si e para si.

A única ressalva ao documentário é o fato de, no final, o roteiro parecer forçar uma conexão entre o álbum de 1974 e o início de um esgotamento artístico de Elis, numa tentativa um tanto apressada de conectá-lo ao processo que levaria à sua trágica morte oito anos depois. Mas mostra sem meias-palavras o (real) autoboicote de sua carreira internacional.

Elis Regina gravando "Modinha" - com o rosto de Tom Jobim surgindo ao final em brilho plácido e olhar no além - desvela a substancialidade artística atingida por esses músicos brasileiros.

Vê-se que eles têm plena consciência do que estão fazendo: a sensação é de que o filme registra um presente ampliado, tão amplo que passa, desde então, a se tornar parte fixa de tudo o que virá.

Serviço:

Documentário: Elis e Tom, só tinha que ser com você.

Em cartaz no Cine Aurora, em Londrina

(confira programação de cinema no site da FOLHA

Direção Roberto de Oliveira e Jon Tob Azulay