São Paulo, 02 (AE) - A biografia de Joe Connelly informa que ele é nova-iorquino, nascido em 1963, filho de pais católicos que se conheceram no mesmo hospital onde viria a trabalhar como paramédico por dez anos. Conta também que abandonou a universidade, bebia demais e pôs o pé na estrada, como fazem tantos jovens. Sem emprego, fez um curso rápido de enfermagem, tirou diploma de paramédico e passou a trabalhar no ramo até quando aguentou o tranco. "Vivendo no Limite" (Companhia das Letras, 344 páginas, R$ 23,49) é o relato da experiência de vida de Connelly, e Frank Pierce, seu alter ego. Como se pode prever, trata-se de um livro muito duro. Fala da doença, da dor, da morte. O estilo é direto, como costuma ser o dos que fazem seu depoimento por escrito. Aliás, se há uma característica de "Vivendo no Limite" é a sua absoluta despreocupação em ser "literário". Poderia ser um defeito. E realmente, a acumulação de fato sobre fato seria talvez falta de aprofundamento literário. Não é bem o caso.
Connelly não procura mesmo embelezar o seu relato. Não é dado a artifícios, nem parece preocupado com prêmios literários ou com a invenção estética. Mas se o livro é abertamente catártico nem por isso deixa de ter um eixo conceitual e - por que não? - literário. O roteirista Paul Schrader bem percebeu essas qualidades. Esse eixo do texto se apóia em alguns personagens recorrentes. Claro, há o narrador em primeira pessoa
Frank Pierce. Ao lado dele, Mary, que forma esse estranho "par romântico" do livro e do filme: o paramédico às portas da loucura, a ex-junkie que acompanha o pai moribundo.
Mas há também a presença de Rose, ou de seu fantasma, que retorna periodicamente, a imagem da garota que ele não pôde salvar. Rose incorpora a culpa de Pierce. Uma culpa, digamos assim, que realisticamente ele não precisaria assumir. Afinal, era apenas uma moça chicana, que teve um ataque bravo de asma na calçada, não conseguiram entubá-la a tempo e ela morreu. Mas vá explicar que a culpa não é necessária para alguém que acredita em pecado original.
Há também Burke, o pai de Mary. É outro "motivo" dominante do relato. O homem que luta para viver e depois luta para morrer, em vão. O homem que mantém sua família em suspenso com sua doença, que leva a sua mulher à loucura, e traz Mary para a órbita de Pierce. A via-crúcis de Burke, o pai em estado de coma, assinala as diversas etapas da deterioração emocional de Pierce. São os passos da cruz, revividos por um católico enragé, que sucumbe, no fim, à tentação do mais capital dos pecados.
Esses eixos não servem apenas para estruturar um relato. São eles que vão conduzindo o personagem em sua trajetória rumo à redenção. Porque é isso mesmo que Pierce deseja, pelas vozes de Connelly e Scorsese. Redimir-se e redimir um mundo em transe. Atravessar o caos para chegar à quietude, à paz. As cenas finais
tanto do livro quanto do filme, sugerem que essa quietude desejada não é deste mundo. Tudo o que por aqui se pode esperar é alguma forma de consolação, vinda nem tanto da fé, mas de outro ser humano. Uma forma no mínimo paradoxal, ou leiga, de praticar o catolicismo. (L.Z.O.)