São Paulo, 23 (AE) - A primeira imagem do filme "Até Que a Vida nos Separe" mostra São Paulo de ponta-cabeça. A câmera de Rodolfo Sanchez voa sobre a cidade para revelar as matrizes da relação do realizador, o publicitário José Zaragoza, com a realidade: sexo, poder e dinheiro. Não é, afinal, atrás dessas três coisas que correm todos os seres humanos, como já disse o dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt? Mas esse vôo alucinante mostra que Zaragoza está atrás de uma quarta: transcendência.
O sexo, em seu primeiro longa-metragem, que estréia na sexta-feira, funciona como diagnose para revelar que os habitantes dessa cidade vivem uma contradição em movimento. Eles não querem criar uma família, mas não podem viver sem ela.
Os cinco amigos do filme de Zaragoza enfrentam o mesmo dilema. Correm atrás de sexo, poder e dinheiro, administram de maneira satisfatória suas necessidades materiais, mas falta algo que transforme essa orgia em valor permanente, resistente ao cinismo e à brutalidade do mundo moderno. O título do filme traduz, assim, a crença na redenção dessa sociedade hedonista por intermédio da consciência do outro, de um laço de amizade que substitua a frágil corda familiar, pronta a se romper ao menor movimento. Não é a morte que separa as pessoas, mas o estilo de vida. Nossos protoparentes foram expulsos do paraíso justamente quando descobriram que vida em família exige o exorcismo do demônio que corrompe a todos. Freud, muito sabiamente, apontou para a caverna interior onde morava o anjo caído. A consciência esconde o que a natureza insiste em mostrar.
Zaragoza, um cineasta sensual que também pinta (outro traço de sensualidade), filtra questões metafísicas pelo corpo. Segundo Zaragoza, o filme pretende mostrar que "a amizade é a única recompensa para aqueles que vivem numa cidade impessoal e violenta como São Paulo". Entre esses cinco amigos a relação é quase incestuosa, segundo a interpretação quase calvinista da licenciosa Lulu. É ela que, no limite da paciência, acusa seus quatro amigos de uso e abuso sexual do semelhante, após descobrir que o sexto personagem do roteiro, Tônio (Murilo Benício), aproximou-se dela por causa de uma promoção profissional.
Como em "Teorema", de Pasolini, que também tinha cinco personagens familiares do capitalismo moderno (a mãe, o pai, o filho, a filha e a empregada), Zaragoza começa seu filme apresentando os personagens da comédia humana: João (Alexandre Borges), alto funcionário da Bolsa de Valores, Maria (Júlia Lemmertz), executiva de uma multinacional, Pedro (Norton Nascimento), promotor numa editora, Paulo (Marco Ricca), herdeiro de uma grande imobiliária e Lulu (Bety Goifman), uma produtora de moda. Todos nomes bíblicos, excetuando-se Lulu, também a diabólica personagem de Wedekind.
Não é a beleza de um anjo caído pasoliniano que vai alucinar os integrantes dessa família alternativa, mas a vida numa cidade como São Paulo, o demoníaco território dos falsos valores, das injustiças, da violência, do vazio existencial. Num segundo momento, o cineasta desce com sua espada e começa a castigar seus personagens. O mal começa a corromper o que restou de íntegro na natureza dos cinco amigos. João, que rejeitou o padrastro alcoólatra e a mãe pobre, recebe a visita dos dois num desses muitos dias de enchente em São Paulo. O encontro acaba em morte. Paulo tem seu relógio roubado e é agredido por um garoto de programa em seu apartamento. Lulu descobre que o porteiro de seu prédio está envolvido num crime. Pedro mergulha numa viagem de pó e sexo. Maria não consegue sequer a atenção de seu gato de estimação. A vida continua em ritmo de tragédia.
São Paulo é cenário dessa parábola sobre o Sísifo moderno, condenado a redescobrir a vida em meio a esses escombros urbanos. Como publicitário, Zaragoza sabe que a fragmentação não foi apenas um fenômeno estético do cubismo, mas anunciou a nova configuração psicológica do homem moderno. Seu filme tem exatamente essa estrutura. Não se fixa em nenhum personagem. É difuso. Zaragoza não aceita o ceticismo e insiste na integração transcendental, na comunicação com o outro, veículo de redenção no labirinto urbano.
Não será o conteúdo de "Até Que a Vida nos Separe" que vai escandalizar o público, mas sua forma. Zaragoza jura que não quis provocar ninguém. Acha que sua estréia como diretor, aos 66 anos, é a prova maior de que seu fascínio pelo cinema é menos profundo que o carinho pela cidade escolhida por ele para viver.