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O CINÉFILO FIEL 5m de leitura

Filme da Netflix traz o preto e o branco, no fio da navalha

“Identidade” aborda a amizade de duas mulheres negras de pele clara e os conflitos emocionais de uma que decide se passar por branca

ATUALIZAÇÃO
24 de novembro de 2021

Carlos Eduardo Lourenço Jorge
AUTOR

  “Identidade” (Passing), disponível em Netflix, começa não com uma cena inicial, mas com uma paisagem sonora introdutória. Seja uma ilusão de ótica ou o sensor da câmera deliberadamente super-exposto, o quadro (a tela) é banhado em branco, mas com trechos de conversa banal adensado em camadas no mix de áudio. À medida que a imagem desaparece, uma rua de Nova York é gradualmente revelada, mas o significado da abertura sem visão não se perde: as pessoas falam e o entorno social pode depender de uma única sílaba. Essa atmosfera instável, meio “gossip”, é o habitat da estreia na direção da atriz Rebecca Hall, com foco na amizade entre duas mulheres negras de pele clara, uma das quais decide "passar-se" por branca.

"Identidade", adaptado de um livro, filme se passa em 1920  ao som de jazz
 

Essa relação entre palavra e imagem assinala as limitações do filme para se passar como peça de cinema, por mais oportuno e fascinante que seu tema possa ser. A direção de Hall transmite um bom gosto inequívoco: cinematografia em preto e branco brilhante, de alto contraste, ritmo dramático como andar com sapatos finos e uma trilha sonora de jazz apropriada para a época (anos 1920) do músico eletrônico Devonté Hynes, também conhecido como Orange Blood. Muito do diálogo entre os personagens é retirado da clássica novela original de Nella Larsen, publicada em 1929; mas, criticamente, Hall parece buscar um substituto forte para o monólogo interior da personagem principal Irene (interpretada por Tessa Thompson), carregado de palpáveis dilemas emocionais Nesse sentido, o filme é típico de adaptações literárias que nos acostumamos ver de diretores britânicos, em que textos literários canônicos são trazidos para a tela com rigidez respeitosa e cautelosa.

     “Identidade” é uma daquelas preciosidades para se guardar no intelecto – e na retina. Conta a história de duas amigas de infância (Irene e Clare, vividas com absoluta entrega por Tessa Thompson e Ruth Negga), negras de pele mais clara que se reencontram já adultas em Nova York. As vidas de ambas se entrelaçam cada vez mais; entretanto, embora tenham muito em comum, enorme diferença as separa. Irene é afro-americana e casada com um médico negro, Brian (André Holland), enquanto Clare “passa por” branca e é casada com John, um rico branco racista interpretado por Alexander Skarsgard. Esta perturbadora e contraditória situação posta logo de início é construída na negação das origens e da identidade de Clare. A tensão que o reencontro cria entre ambas é palpável, pela maneira como são separadas em termos de classe e meio social. Mas há algo que transcende esta linha: uma infância compartilhada e algo reconhecível mas que não pode ser registrado. Clare vai à uma festa da comunidade afro-americana no Bronx, se reaproximando de suas raízes afro.   E aquela armadura que ela construiu vai se rompendo aos poucos, deixando emergir aspectos íntimos, suas próprias sensibilidades que ela reprimiu para manter as aparências e a farsa.

 Apesar de certas marcações às vezes teatrais da encenação, Rebecca Hall se mostra uma narradora inteligente e sutil, sensível e delicada (evita cair em excessos discursivos sobre a problemática do racismo), uma boa diretora de intérpretes e conta com as contribuições não menos determinantes do piano jazzistico de Devonté Hynes e do diretor de fotografia catalão Edu Grau com sua imagem em preto & branco que nos permite mergulhar no "claro-escuro" da época.

“Identidade”é uma raridade para a Netflix, que o adquiriu no Festival de Sundance talvez pensando em prêmios e indicações. Pode ter alguma semelhança aparente com “Ma Rainey’s Black Bottom”, mas é filme muito mais complexo, sua busca menos didática, sua encenação tão bem construida. E tem duas atrizes brilhantes como Thompson e Negga, principalmente a primeira, que constrói uma série de emoções confusas e certamente muito difíceis de interpretar. 

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