“Identidade” (Passing), disponível em Netflix, começa não com uma cena inicial, mas com uma paisagem sonora introdutória. Seja uma ilusão de ótica ou o sensor da câmera deliberadamente super-exposto, o quadro (a tela) é banhado em branco, mas com trechos de conversa banal adensado em camadas no mix de áudio. À medida que a imagem desaparece, uma rua de Nova York é gradualmente revelada, mas o significado da abertura sem visão não se perde: as pessoas falam e o entorno social pode depender de uma única sílaba. Essa atmosfera instável, meio “gossip”, é o habitat da estreia na direção da atriz Rebecca Hall, com foco na amizade entre duas mulheres negras de pele clara, uma das quais decide "passar-se" por branca.

"Identidade", adaptado de um livro, filme se passa em 1920  ao som de jazz
"Identidade", adaptado de um livro, filme se passa em 1920 ao som de jazz | Foto: Divulgação

Essa relação entre palavra e imagem assinala as limitações do filme para se passar como peça de cinema, por mais oportuno e fascinante que seu tema possa ser. A direção de Hall transmite um bom gosto inequívoco: cinematografia em preto e branco brilhante, de alto contraste, ritmo dramático como andar com sapatos finos e uma trilha sonora de jazz apropriada para a época (anos 1920) do músico eletrônico Devonté Hynes, também conhecido como Orange Blood. Muito do diálogo entre os personagens é retirado da clássica novela original de Nella Larsen, publicada em 1929; mas, criticamente, Hall parece buscar um substituto forte para o monólogo interior da personagem principal Irene (interpretada por Tessa Thompson), carregado de palpáveis dilemas emocionais Nesse sentido, o filme é típico de adaptações literárias que nos acostumamos ver de diretores britânicos, em que textos literários canônicos são trazidos para a tela com rigidez respeitosa e cautelosa.

“Identidade” é uma daquelas preciosidades para se guardar no intelecto – e na retina. Conta a história de duas amigas de infância (Irene e Clare, vividas com absoluta entrega por Tessa Thompson e Ruth Negga), negras de pele mais clara que se reencontram já adultas em Nova York. As vidas de ambas se entrelaçam cada vez mais; entretanto, embora tenham muito em comum, enorme diferença as separa. Irene é afro-americana e casada com um médico negro, Brian (André Holland), enquanto Clare “passa por” branca e é casada com John, um rico branco racista interpretado por Alexander Skarsgard. Esta perturbadora e contraditória situação posta logo de início é construída na negação das origens e da identidade de Clare. A tensão que o reencontro cria entre ambas é palpável, pela maneira como são separadas em termos de classe e meio social. Mas há algo que transcende esta linha: uma infância compartilhada e algo reconhecível mas que não pode ser registrado. Clare vai à uma festa da comunidade afro-americana no Bronx, se reaproximando de suas raízes afro. E aquela armadura que ela construiu vai se rompendo aos poucos, deixando emergir aspectos íntimos, suas próprias sensibilidades que ela reprimiu para manter as aparências e a farsa.

Apesar de certas marcações às vezes teatrais da encenação, Rebecca Hall se mostra uma narradora inteligente e sutil, sensível e delicada (evita cair em excessos discursivos sobre a problemática do racismo), uma boa diretora de intérpretes e conta com as contribuições não menos determinantes do piano jazzistico de Devonté Hynes e do diretor de fotografia catalão Edu Grau com sua imagem em preto & branco que nos permite mergulhar no "claro-escuro" da época.

“Identidade”é uma raridade para a Netflix, que o adquiriu no Festival de Sundance talvez pensando em prêmios e indicações. Pode ter alguma semelhança aparente com “Ma Rainey’s Black Bottom”, mas é filme muito mais complexo, sua busca menos didática, sua encenação tão bem construida. E tem duas atrizes brilhantes como Thompson e Negga, principalmente a primeira, que constrói uma série de emoções confusas e certamente muito difíceis de interpretar.