Gramado - O 30º Festival de Gramado - Cinema Brasileiro e Latino parece marcado pelo signo do paradoxo. Enquanto na tela do Palácio dos Festivais explode a modernidade tecnológica com a perfeição luminosa das primeiras imagens digitalizadas na história da mostra gaúcha, a programação repete o velho, massacrante e, ao que tudo indica, insolúvel sistema de exibição compacta, ou ''noite plena'', o que significa um longo e perigosamente extenuante programa noturno à base de vários curtas, várias homenagens e dois longas, em competição ou ''hors concours'', com duração nunca inferior a cinco horas. A este processo desgastante acrescente-se a novidade maior desta edição, a mostra competitiva de documentários brasileiros, exibidos à tarde, e o quadro de pré-estresse estará quase completo. O quase fica por conta de mais filmes inéditos, reunidos na rubrica vespertina ''Première''. Por sorte a meteorologia, que abriu a semana enviezada, expulsou a chuva renitente, fez as pazes com o sol e trouxe de volta o frio seco da serra.
Sem grandes pompas e eficiente, a festa de abertura da edição número trinta do festival. Diversas homenagens, hora da saudade, troféus aos sobreviventes, biológicos e cinematográficos (José Lewgoy, John Herbert, Darlene Glória...) e uma ótima performance da Orquestra Brasileira do Cinema, que fez aqui sua estréia nacional interpretando temas e trechos de trilhas sonoras de filmes nacionais, de ''Deus e o Diabo na Terra do Sol'' a ''Netto Perde sua Alma'', com regência do compositor e maestro Celau Moreira. As homenagens se sucedem a cada dia, reconhecendo carreiras ( Troféu Oscarito para Marieta Severo e Troféu Eduardo Abelin para Roberto Farias) e esforços continentais em prol do cinema (Cinemateca Uruguaia). O livro-álbum ''Gramado - 30 Anos de Cinema Brasileiro'', contando em texto e ilustrações as três décadas do festival, foi lançado ontem em concorrida tarde de autógrafos.
Brasil e Chile abriram as mostras competitivas de longas nacionais e latinos, respectivamente com ''Querido Estranho'', de Ricardo Pinto e Silva, e ''Táxi para Três'', de Orlando Lubbert. O primeiro, uma comédia dramática sobre tragicômicas relações familiares baseada em peça de Maria Adelaide Amaral, já está inscrito com destaque na crônica do festival como o primeiro longa metragem exibido em Gramado em cópia digital de alta definição, com tecnologia da TeleImage, empresa co-produtora do filme. Embora não plenamente consumado, com algumas irresoluções no roteiro, ''Querido Estranho'' consegue significativa adesão da platéia por mostrar uma realidade ''em família'' que se aproxima, de uma ou de outra forma, do cotidiano das pessoas. E também por um elenco afiado - Daniel Filho, Sueli Franco, Ana Beatriz Nogueira e Claudia Netto, entre outros.
Também enveredando pelo caminho nunca fácil do drama temperado pela comédia, o chileno ''Táxi Para Três'' narra a odisséia de um taxista chamado Ulisses, que acredita poder sair de suas dificuldades financeiras tornando-se cúmplice de uma dupla de assaltantes que o sequestram para que se torne motorista durante seus patéticos roubos. O tentação pelo dinheiro fácil o conduz a um único desfecho: a traição. O filme foi um sucesso e um recordista no Chile, levando aos cinemas mais de 200 mil pessoas em menos de um mês, e chegou a Gramado precedido pela Concha de Oro, prêmio principal o último Festival de San Sebastián. O diretor Orlando Lubbert fez carreira na Alemanha, e só voltou ao Chile em 1995. O filme, baseado em história real, é uma sátira de costumes que se apóia em humor bastante ingênuo, com resultado bem mais inofensivos do que parece à primeira vista. Nunca é demais focalizar os excluídos do banquete social, mas Lubbert adota um enfoque populista em excesso, comprometendo o resultado final.
Até agora o grande destaque entre todos os filmes, brasileiros e latinos, é o argentino ''O Filho da Noiva'', o mais sério candidato a Kikitos. Aplaudido várias vezes durante e ovacionado ao final da projeção, o filme de Juan José Campanella é a história de um homem na crise dos 40, ainda mais perplexo quando o pai confessa que pretende casar-se na igreja com a mãe, que sofre do mal de Alzheimer. É um filme que combina com rara sabedoria humor verbal irônico e físico com a intensa emoção dos melhores melodramas, mas tudo muito contido e verdadeiro, sem virulências ou hostilidades mas com delicadeza à flor da pele. Além de um roteiro impecável (do próprio Campanella e de Fernando Castets), que sabe trabalhar no limite um leque de variáveis, temas e personagens, ''El Hijo de la Novia'' apóia-se ainda em elenco de enorme talento: Ricardo Darin, Norma Aleandro e Hector Alterio.
Outro longa brasileiro com projeção digital é ''Dois Perdidos Numa Noite Suja''. Longe de ser apenas mais uma adaptação da peça homônima de Plínio Marcos, o filme dirigido por José Joffily a partir de roteiro de Paulo Halm propõe pelo menos duas audaciosas intervenções no texto, como transferir a ação de Santos para Nova York e alterar o sexo de um dos personagens - Tuco, companheiro de Tonho nas quebradas da vida, acaba virando Rita. Com certeza iniciando em Gramado um longo percurso de polêmicas e radicalismos, ''Dois Perdidos...'' invade o universo dos deserdados preservando o espírito e a coragem do original de Plínio Marcos. Entre as qualidades que o filme oferece está a química perfeita entre Roberto Bomtempo (Tonho) e Débora Fallabela (Rita), os perdidos que são um achado nas mãos de Joffily.