Existem muitas maneiras de começar um evento. Há discursos sobre a programação, os agradecimentos aos apoiadores, a reverência aos artistas, as citações aos realizadores. Tudo isso aconteceu no Festival de Dança de Londrina que começou no último sábado (8) e termina neste final de semana.

LEIA MAIS:

Festival de Dança de Londrina divulga a programação de 2022

Mas o Festival trouxe também uma abertura inusitada: ofereceu flores ao público, margaridas cujo significado remetem a uma coisa necessária no mundo: a delicadeza. A delicadeza e a gentileza que estão em falta num período político turbulento do País. E cada um nas poltronas recebeu uma flor!

No discurso de abertura, Renato Forin Jr, coordenador de comunicação e curador do Festival, explicou: "Flores como estas estiveram nos velórios em que nós não pudemos estar. Quantos velórios evitáveis no país que contabilizou 11% de mortes do mundo na pandemia? A maioria, pretos e pobres. Quantos velórios evitáveis na nação que mais assassina pessoas trans, que espanca diuturnamente mulheres? Aqui volta a pergunta: o que pode um corpo? O que pode um corpo morto dar a nós, vivos, como missão? Imaginem, então, 700 mil corpos?"

E para não ser só tristeza, completou: "Margaridas. A flor brasileira mais simples, que brota nos lugares inóspitos. A flor, única, que se colocou contra um pelotão de soldados com baionetas em punho. Era década de 1960 e parecia ter passado. Os poetas nos ensinam que as flores mais comoventes nascem na rua: furam o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Essas pétalas que estão nas mãos de vocês, aparentemente frágeis, não são uma flor, são uma metáfora. Porque o nosso desejo é de primavera."

Assim, o primeiro Festival de Dança de Londrina, após a pandemia, começou com corpos e mentes renascendo para um novo tempo.

Teatro Ouro Verde lotado durante as apresentações do Festival de Dança de Londrina
Teatro Ouro Verde lotado durante as apresentações do Festival de Dança de Londrina | Foto: Fábio Alcover/ Divulgação

O tema do Festival deste ano, "O Que Pode Um Corpo?" reverberaria na sequência, a partir do espetáculo de abertura: "ou 9 ou 80", do grupo Clarin, de São Paulo. E aí, o que não cabia mais em palavras, explodiu nos corpos dos dançarinos de funk: corpos negros, potentes, politizados, anunciando que há um Brasil que faz da arte, transformação. "ou 9 ou 80" é uma citação a dois crimes hediondos: as nove mortes registradas num baile funk em Paraisópolis, São Paulo, e os 80 tiros disparados contra o carro de uma família em Guadalupe, no Rio de Janeiro.

"O Que Pode Um Corpo?" Pode denunciar que há discriminação e preconceito. Pode denunciar que há racismo, homofobia e gordofobia nas atitudes cotidianas que aparecem nos noticiários e nos fazem quase impotentes. Mas a arte não está na circunscrição da telinha luminosa da TV que toma as noites que passamos no sofá. A arte, a arte verdadeira, não se acomoda. A arte, a arte verdadeira, é rebelde, irreverente e transborda a cada vez que saímos do sofá para ir ao teatro.

"O Que Pode Um Corpo?" A atriz Denise Stoklos também responderia à pergunta na segunda noite do Festival com o espetáculo "Abjeto-Sujeito", inspirado na obra de Clarice Lispector e permeado pela voz de Elis Regina. E assim tivemos três grandes mulheres no palco, e a certeza de que a arte nos acompanharia atendendo a outro apelo do Festival de Dança: levem tudo com vocês.

O convite seria renovado a cada noite, nas apresentações de E.L.A., com Jéssica Teixeira (Fortaleza - CE); na apresentação de grupos locais de dança; na alegria do espetáculo "Mirabolante" (Campinas- SP) para crianças; em "Olhos nos Olhos", do grupo Boca de Baco (Londrina-PR); na ginga do Grupo Höröyá que reuniu músicos do Brasil e do Senegal; no espetáculo "Outros" da Cia Nua (Londrina - PR); no "Music, Body and Soul", da emocionante Raça Cia de Dança (São Paulo - SP); na estreia de Bora! do Ballet de Londrina; nos espetáculos "V.I.C.A." e "Tempestade" do Balé Teatro Guaíra (Curitiba - PR).

E terminamos com os aplausos do público a cada noite. A cada emoção despertada pela dança que responde à pergunta; "O Que Pode Um Corpo?". Para cada um que foi ao teatro nas noites chuvosas ou não, fica a imagem da potência da arte e o desejo de que nossos corpos possam sair das poltronas, da inércia, do comodismo, da ineficiência, para consagrar atos, movimentos e palavras a esse fluxo de cultura que torna Londrina mais feliz a cada festival.

Se há uma coisa a ser levada por cada um, depois de cruzar a porta do teatro, é o calor humano desta (con) sagração da primavera em que dançamos juntos.

"OU 9 OU 80: O ESPETÁCULO QUE LEVEI PARA CASA"

Depoimento de Ana Luíza Barreto, estudante de Comunicação Social da UEL (Universidade Estadual de Londrina ) e estagiária de jornalismo na Folha de Londrina

Ana Luiza Barreto com sua mãe Rosângela C. Barreto Silva após o espetáculo 'ou 9 ou 80'
Ana Luiza Barreto com sua mãe Rosângela C. Barreto Silva após o espetáculo 'ou 9 ou 80' | Foto: Acervo pessoal

"No sábado (8), levei minha mãe para assistir ao espetáculo “ou 9 ou 80” da companhia da Clarín Cia de Dança, de São Paulo, na abertura do Festival de Dança de Londrina. Resolvi convidá-la por ser uma experiência nova.

Chegamos ao Teatro Ouro Verde ainda meio perdidas sem saber onde entregar o folder que garantia os ingressos. Perto das 20h, as portas se abriram e procuramos algum lugar para sentarmos, ficamos na terceira ou quarta fileira.

Na abertura, o evento contou com dança de rua.

Uma das partes mais marcantes, foi quando um dos artistas falou sobre o preconceito sofrido por pessoas negras, ele disse assim “Eu que sou brasileiro, acham que sou ladrão, normalmente as pessoas atravessam a rua para não ter que estar do mesmo lado que eu”, expôs o artista durante um dos atos enquanto mostrava a cor da sua pele. Mas o espetáculo ainda contou com temas como a sexualizaçao da mulher, gordofobia, homofobia, entre outros assuntos de ampla discussão social.

Outra cena bastante memorável foi a última do último ato que mostrava um dos dançarinos que foi morto injustamente enquanto os companheiros levavam o corpo do jovem para sua mãe. Lembro desta cena por conta da minha mãe, pois mesmo que ela soubesse que era apenas uma atuação, ela se compadecia com a dor da outra mãe por fazê-la pensar que isso infelizmente pode acontecer aos seus filhos.

Conversando no caminho de volta para casa, ela comentou sobre esta preocupação com meu irmão por ele fazer diariamente um trajeto de bicicleta indo para a escola dele, devido ao fato que cada vez mais o mundo está se tornando ignorante."

...

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link