Fernando Bento inaugura mostra individual em SP
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domingo, 02 de abril de 2000
Por Maria Hirszman
São Paulo, 03 (AE) - A exposição que Fernando Bento inaugura amanhã (04) à noite na Galeria São Paulo é extremamente enxuta, mas repleta de desdobramentos. São apenas cinco peças, construídas com o rigor que caracteriza sua obra e dão continuidade à já conhecida viagem de Bento pelo universo do mar e da navegação. Nesta mostra ele também dá continuidade às pesquisas que vem desenvolvendo com a tinta das canetas Bic e tanto seduziram o público de suas duas últimas exposições.
A relação de Bento com o mar é antiga. Ele nasceu em Cabo Frio e aprendeu com seu pai, um marceneiro naval, o ofício de construir barcos. Hoje ele usa essa arte e suas matérias-primas para criar as obras que, segundo ele, traduzem a história épica e dramática do Brasil. Apesar do indiscutível apelo estético - suas peças atraem não apenas o olhar, mas também o tato - e do cuidado construtivo, seu trabalho tem uma clara intenção política, partindo de uma reflexão crítica sobre as mazelas do País. "Acho que nunca conseguiremos sair desta situação de colônia", afirma o artista mostrando uma das peças que compõem a exposição e se assemelha a uma cama na qual é impossível deitar-se. A metáfora é extremamente sutil, mas poderosa. Sobre o leito azul (toda a exposição é dessa cor, numa clara alusão ao mar), há uma estrutura atravessada, que impede o descanso e causa um incômodo imediato. Não por acaso essa barreira é feita de jacarandá, madeira que simboliza o saque que nossas reservas florestais vem sofrendo ao longo de séculos. "Procuro falar da dificuldade de se construir algo por aqui", explica o artista. Desequilíbrio - A idéia de desequilíbrio e de impedimento norteia outros trabalhos, como aquele composto por duas cadeiras unidas, cuja montagem é precária e "lembram a sensação de estar mareado". Elas estão de costas uma para outra e foram unidas por uma enorme meada de linha de pesca azul, assemelhando-se a uma roca surreal, com a qual Bento produziria as camadas de cor que deposita sobre seus trabalhos.
Outra obra que lida com a questão do impedimento é aquela que Bento chama de piscina, uma estrutura retangular que se projeta para a frente e tem dois orifícios. O espectador pode olhar para dentro dele de cima (a partir do mezzanino da galeria) ou de baixo. "Ela expressa um paradoxo do Brasil, é uma obra em que você entra por baixo, sugado, ou por cima, num mergulho abissal", explica. No entanto, não há comunicabilidade entre esses dois orifícios, fazendo com que a trajetória do olhar seja sempre interrompida. Azuis - É curioso notar que, apesar de usar a mesma tinta de caneta Bic em todos os trabalhos, o artista consegue obter tons completamente distintos de azul. Em uma enorme pintura de três metros de largura por três de altura, ele se aproxima do azul profundo e assustador do fundo do mar. Já no espinhoso relevo em madeira, a cor adquire maior leveza e brilho. Essa peça ganhou o apelido de coral, depois que Bento descobriu que esse animal, que vive em mares quentes e é responsável pela formação de recifes e atóis, é na verdade um parasita que navega pelos oceanos até se fixar num lugar aprazível. Eles manteriam então um interessante parentesco com os personagens da épica aventura brasileira.
Quem viu as obras anteriores de Fernando Bento notará a impressionante coerência em sua produção, desde o início de sua carreira. Nos trabalhos que fazia náquela época, como as mandalas que criou usando pregos para desenhar sobre superfícies metálicas, já indicavam claramente o caminho atual. Bento, que foi genro de Mira Schendel, mudou-se para São Paulo em 1975. Após realizar algumas exposições, sua carreira pessoal acabou ficando um pouco de lado enquanto o artista se tornava um auxiliar indispensável para vários dos grandes nomes da arte brasileira contemporânea.
Desde 1997, no entanto, o artista vem mantendo a média de uma exposição individual por ano. Para deleite do público. Ele reconhece ter uma relação obsessiva com a arte. "Vejo o trabalho como uma saída; é como estar no mar", diz. Essa navegação não é pessoal, mas coletiva. Com ele estariam navegando aqueles que procuraram ver o Brasil. Daí a profunda admiração que o artista professa por Hélio Oiticica. "Admiro-o até pelo aspecto cambeta, vira-lata como o País e com o qual é tão difícil conviver", explica. Sua produção não tem esse aspecto inacabado que tanto admira em Oiticica.
Ele aprendeu muito com mestres como Sergio Camargo e Willys de Castro para explorar a precariedade material. É por meio da beleza que ele procura contribuir com a reflexão sobre a história e a sociedade brasileiras. "Se a arte serve para alguma coisa, é para dar para o outro", conclui. Serviço - Fernando Bento. De segunda a sábado, das 10 às 20 horas. Galeria São Paulo. Rua Estados Unidos, 1.456, tel. 852-8855. Até 26/4.