Imagem ilustrativa da imagem Estudo revela atuação de grupos de interesses em verbas de cultura
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Criada com o intuito de salvar fazedores de cultura durante a pandemia, a Lei Aldir Blanc 1 (LAB 1) passou por episódios de aplicação inadequada de recursos, abordados na série de reportagens investigativas “A Crise da Cultura”. Relatos, denúncias e notícias confirmam que o panorama se repetiu em diversas partes do Brasil. A situação foi reconhecida recentemente pelo Ministério da Cultura (MinC) e Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC). Movimentos sociais e especialistas em políticas culturais alertam que o panorama pode voltar a acontecer no atual momento, envolvendo a Lei Paulo Gustavo e Política Nacional Aldir Blanc.

Mesmo após dois anos, fatos relacionados ao caso da Lei Aldir Blanc continuam vindo à tona. Um estudo apontou que durante a aplicação de recursos públicos da LAB 1, teria ocorrido atuação de agrupamentos, dos quais faziam parte integrantes que participaram de reuniões da deliberação destas políticas junto ao poder público, influindo no formato e nas normas de editais de cultura. Se apresentavam como grupos aparentemente separados e representativos da cultura paranaense no sentido amplo, mas documentos assinados por coletivos e indivíduos revelam um único agrupamento atuando com várias designações diferentes.

Conselheiros e representantes setoriais que não quiseram se identificar (a maioria das fontes desta reportagem pediu anonimato por receio de represálias) relatam que antes da pandemia, os principais articuladores integraram diversos movimentos e coletivos (que fundaram ou se apropriaram), tais como Faca (2014), Frente Acorda Cultura Curitiba (2015), Frente Única da Cultura - FUC (2018), movimento de artistas impedidos de tocar nas ruas de Curitiba (2019), que foram iniciativas legítimas, mas que acabaram tendo seus objetivos desviados em razão da apropriação de movimentos sociais por interesses financeiros ou político-eleitorais. Esta prática acarretava em conflitos e esvaziamento da causa social, levando ao desmonte de cada movimento. Ano após ano, os mesmos indivíduos ressurgiam em outros agrupamentos com nomes diferentes.

Há ainda testemunhos de que as principais lideranças se articulam politicamente juntas há mais de 10 anos. “Muitos eram filiados a partidos políticos antes das jornadas de junho [de 2013], é um pessoal partidarizado e está no espaço público de cultura”, afirma Jyudah Ichiban, ex-conselheiro municipal de cultura e ex-suplente do CNPC (Conselho Nacional de Política Cultural).

No panorama da pandemia de Covid-19, a partir de 2020, foram reconhecidas as mesmas lideranças (por meio de pesquisas em redes sociais e depoimentos de fontes anônimas) atuando em coletivos e novos agrupamentos, privilegiados no diálogo com o poder público por via político-partidária. Entre os que estiveram na articulação da LAB 1 no Paraná, foram localizados: Rede Coragem, Fórum de Emergência Cultural do Paraná, Frente Movimento, Teatro Em Movimento (TEM), alguns dirigentes que assumiram o sindicato SATED-PR em 2021, bases de cultura partidárias, além de relações com determinados parlamentares. Apesar da atuação aparentemente local, uma checagem de fatos documentais e de redes públicas na internet aponta conexões nacionais (revelando legitimação através de hegemonia imposta por poder político e econômico).

Por exemplo, o representante local do Fórum de Emergência Cultural do Paraná faz parte da Operativa Nacional da Lei Aldir Blanc e da Lei Paulo Gustavo, e integra o Comitê de Cultura do Paraná, relacionado ao MinC. Uma integrante do Lab Cultura Digital é atualmente a representante do Ministério da Cultura no escritório do Paraná.Outros Exemplos: a Rede Coragem integra a Rede Livre, que engloba uma série de projetos pelo Brasil afora, gerida em conjunto com Fora do Eixo (FdE), coletivo Soylocoporti e Mídia Ninja (que à luz da teoria política, são reconhecidos aparelhos ideológicos) e outros parceiros citados em seu site. São relações que apontam para blocos no poder, considerando que são organismos de base, notoriamente relacionados com partidos políticos. Apesar de na aparência se apresentarem como agentes de esquerda, carregam forte discurso capitalista, com práticas descritas por jornalistas e artistas como ação voraz pelos recursos públicos.

Os grupos nacionais citados protagonizaram episódios contraditórios em suas trajetórias, que geraram questionamentos. O Fora do Eixo, inicialmente um coletivo nacional envolvido com captação de recursos públicos para produção cultural, já foi definido pela imprensa como um projeto político/messiânico. Tem um histórico de contradições abordadas por jornalistas e ex-integrantes em diversas reportagens, tais como: totalitarismo e “trabalho semelhante à escravidão”, apropriação de movimentos autônomos, inadimplência, entre outros.

Já a Rede Livre, associada ao FdE, hospeda o Lab Cultura Digital, projeto do mesmo agrupamento, que desenvolveu o site do CNPC do MinC com recursos que foram questionados por conselheiros em denúncias à PGR. Atualmente o site foi tirado do ar após uma nova denúncia.

Grupos de interesse e rede de inter-relações

Este estudo ocorreu após reação virulenta e agressiva de membros destas organizações diante das denúncias de movimentos sociais sobre contradições na LAB 1. A origem deste mapeamento dos grupos de interesses, foi realizado pelo GT de Direitos Humanos do Fórum de Cultura do Paraná (FCP), que em assembleia realizada em 17/01/2022 votou pela liberação integral de documentos sobre políticas culturais.

O Observatório da Cultura do Brasil (OCB) teve acesso ao material, da mesma forma que esta reportagem, e atestou o estudo através de teorias jurídicas, econômicas e das ciências políticas, qualificando o caso como atuação de grupos de interesses e lobby nos recursos de editais.

Para confirmar a identificação dos grupos (identificados pelo GT Direitos Humanos do FCP), o OCB localizou uma rede de relações “pooling accounts em operações estruturadas”, utilizando a teoria dos grafos (muito utilizada pela Interpol e FBI em investigações) associando com uma metodologia estruturalista baseada na localização de interseções de quatro elementos: agentes premiados citados em auditorias sobre a Lei Aldir Blanc; classe dirigente e lideranças de movimentos (com influência no poder público estadual e municipais); lideranças políticas e militância de bases de cultura de partidos; e organizações que mantém controle sobre redes sociais, promovendo constrangimentos contra reclamantes da má aplicação. O cruzamento destes elementos resultou no grafo que faz parte do estudo (exibido nesta reportagem), que aponta conexões ator-rede, e confirma os mesmos nomes citados, se constituindo como um único agrupamento (os nomes não foram expostos na reportagem, por se tratar de uma apuração independente e que não implica em quaisquer acusações criminais, de modo a não violar a integridade moral dos envolvidos).

Irregularidades apontadas em auditorias

Os elementos da metodologia aplicada para gerar o grafo de inter-relações remetem a episódios que marcaram a má aplicação da LAB 1 no Paraná. O primeiro diz respeito a duas auditorias realizadas no estado: uma local, do Tribunal de Contas do Paraná-PR (TCE-PR) em 2022; e outra nacional, da Controladoria Geral da União (CGU) em 2023. Ambas confirmaram irregularidades, como acúmulos de premiações e recursos em mesmos nomes, ajudando no esclarecimento do que motivou a enorme quantidade de excluídos nas políticas assistenciais e emergenciais da LAB.

Informações destas auditorias, somadas a reportagens da série “A Crise da Cultura” e a um cruzamento de dados apontam que articuladores que contribuíram com a elaboração das políticas públicas da LAB 1 teriam se beneficiado de seus recursos, como premiações acumuladas, confirmadas nas duas auditorias (dados podem ser vistos aqui).

Em relação a este assunto, algumas das primeirasdenúncias de movimentos sociais, segundo a série de reportagens, ocorreram em 2020. Na ocasião foram contestadas reuniões a portas fechadas (sem ampla notificação a todas as partes interessadas) do poder público com representantes culturais para regulamentar a LAB 1, com participantes que não representavam a maioria dos segmentos nem regiões culturais do estado.

Informantes whistleblowers revelaram que determinados políticos, influentes junto aos gestores e comissões indicavam os participantes, enquanto lideranças relataram terem sido, de alguma forma, excluídas destes encontros (como OMB, SEPED-PR, a gestão de 2020 do SATED-PR e demais organizações culturais). Como consequência, foram definidas políticas que levaram à exclusão de trabalhadores mais necessitados, devido à burocracia de editais. Entre os segmentos atingidos pela escuta seletiva estavam música popular, artesanato, circo, comunidades tradicionais, entre outras que passavam por dificuldades desde março de 2020, sendo impedidas de trabalhar durante quase 2 anos de lockdown, sem conseguirem acessar os recursos emergências da LAB.

A distribuição assimétrica de verbas de editais, infelizmente tem histórico, confirmado por um outro estudo realizado pelo OCB, que comparou editais de cultura entre 2015 e 2023 (incluindo recursos da LAB 1), apontando que os recursos chegam a uma parcela diminuta, enquanto a maioria dos trabalhadores não recebem recursos.

Denúncias se tornaram inquéritos policiais O último item da metodologia recai sobre organizações que mantém controle sobre redes sociais. Segundo o estudo do GT de Direitos Humanos do FCP, indivíduos ou movimentos sociais que fizeram denúncias formais, com críticas sobre a má aplicação dos recursos da LAB foram constrangidos com ataques pessoais (argumentum ad hominem) em redes sociais. Tais ataques foram identificados como vindos de integrantes de agrupamentos citados nesta reportagem, quando estes tiveram seus interesses econômicos e políticos contrariados. Segundo fontes, seriam ataques para promover intimidação (contra membros da sociedade civil, lideranças, pesquisadores, juristas, imprensa) e tentar paralisar apurações do caso da LAB 1.

O estudo foi realizado entre 2021 e 2022, após os relatos de que havia um silenciamento da classe, que “teme se posicionar em público por medo de retaliações” nas redes sociais. Em relação a essas hostilidades (que poderão ser abordadas com mais detalhes em uma próxima reportagem) movimentos sociais encaminharam denúncias ao Ministério Público, que abriu Notícias de Fato, sendo que a 004621103908-9 se tornou o inquérito (0013860-08.2023.8.16.0013) na Polícia Civil para investigar ações de agrupamentos contra indivíduos que faziam apurações da aplicação de recursos da LAB 1. Corre também na Polícia Federal o inquérito IPL 2021.0027295 para averiguar ações promovidas pelos mesmos agrupamentos contra membro da CF-OMB responsável por acompanhar a aplicação da LAB. Ambos os inquéritos ainda estão inconclusos.

Os grupos citados na reportagem foram procurados via e-mail. O único que retornou foi o sindicato SATED-PR. Em sua mensagem, a entidade se mostrou favorável à auditoria do TCE-PR e à descentralização de recursos. Depoimento este que diverge do fato de diversos membros do sindicato serem apontados nos relatórios de auditorias do TCE-PR e CGU. Afirmou, ainda, que em reportagens da série “A Crise da Cultura” haveriam “informações falsas e distorcidas”. Em ação judicial o presidente do sindicato se refere às reportagens como “fakenews”, porém em checagens feitas por jornalistas não constam questionamentos nem pedidos de direitos de respostas (de nenhuma das organizações citadas) às quase 30 reportagens localizadas, da mesma forma não especificaram quais pontos discordam das apurações ou reportagens sobre o escândalo da Lei Aldir Blanc.

A reportagem teve acesso a diversos documentos, incluindo relatórios e prints com dados sobre o caso, encaminhados aos órgãos competentes. Até o fechamento, não haviam definições de inquéritos ou indiciamentos, o que demanda acompanhamento da imprensa para os desdobramentos destes casos. (Com informações da assessoria de imprensa)