O filme, que acaba de ganhar o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, é comédia negra que imagina um universo paralelo inspirado na história recente do Chile. Retrata o General Augusto Pinochet, símbolo do fascismo mundial, como um vampiro que vive escondido em mansão em ruínas no extremo gelado do continente. Depois de 250 anos de vida, alimentando seu apetite pelo mal para sustentar sua existência, o ditador decidiu deixar de beber sangue e abandonar o privilégio da vida eterna. Já não pode suportar que o mundo continue a lembrar dele como assassino e ladrão. Apesar do caráter decepcionante e oportunista de sua família, ele encontrou nova inspiração para viver uma vida de paixão vital e contrarrevolucionária, através de um relacionamento inesperado.

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Como objeto de arte magnificamente hostil, “O Conde” talvez resulte melhor abordado como um desafio: se você ousar, prepare-se e vá em frente porque a recompensa será grande. Por baixo de toda a teatralidade do gênero – terror, subgênero vampiro – o que se percebe de forma mais viva e marcante na obra são a tristeza e a raiva de Larraín pelo que aconteceu ao seu país. O cineasta revê o legado do ditador 50 anos depois do golpe de Estado que assassinou Allende, e o faz a partir da lucidez da farsa, da seriedade rigorosa do absurdo e do realismo fantástico (mágico) que tranformam o filme numa obra selvagem, sem freio, (in) feliz no seu desespero profundo e engraçado. O premiado roteiro de Larraín e de seu parceiro Guillermo Calderón consegue resolver o difícil desafio de construir uma sátira em torno de Pinochet e do seu impacto no Chile de hoje, sem banalizá-lo ou esquecer suas atrocidades.

Com imagens expressionistas em preto e branco, filme revê o legado nefasto do ditador Augusto Pinochet
Com imagens expressionistas em preto e branco, filme revê o legado nefasto do ditador Augusto Pinochet | Foto: Netflix/ Divulgação

Ambicioso na medida, transbordante de idéias e diálogos inteligentes, com imagens expressionisticamente surpreendentes (em belo preto e branco) e jamais gratuitas: em três únicas palavras, temos o cinema de autor – para acirrar aquela birra dos detratores dessa corrente vilipendiada mas tão viva como brilhante, quando se vê filmes como esse, com assinatura de peso para legitimar uma expressão que descreve os filmes de um diretor ou de um roteirista com clara personalidade artística; termo que procura, antes de tudo, ligar a obra de um cineasta aos seus temas preferidos e à coerência de um estilo inovador e singular.

O ator Jaime Vadell tem aqui a dura missão de encarnar Pinochet, sem que o espectador sinta empatia e sem cair na caricatura. Ele e o restante do elenco alcançam o mesmo nivel de brilho. Com “El Conde”, Larraín lançou sua aventura mais audaciosa e polêmica em quase duas décadas de carreira. Funciona como um retrato de memória e como filme de gênero, com muito humor negro. É obra profana, bizarra, macabra e dolorosa. E muito inventiva, oferecendo extenso material para uma análise artística.

E, claro, para o debate político mais acalorado.