Qualquer pessoa familiarizada (leia-se cinéfilo a rigor) com o cineasta turco Nuri Bilge Ceylan (“Sono de Inverno” e “Era Uma Vez na Anatólia”, já exibidos nop Com-Tour/UEL e nenhum deles disponível em streaming) não ficará surpresa ao descobrir que “Ervas Secas” é um exame longo sobre a relação alienada de um homem frágil com o mundo ao seu redor.

Samet (Deniz Celiloglu) é professor de artes em uma escola remota nas estepes nevadas da Anatólia Oriental. Ele afirma já ter renunciado a todos os ideais, exceto o de partir de lá, de preferência para a capital, Istambul, quando puder pedir um novo destino. Mas, num lugar como este, em que o tempo parece parar, o nosso (anti) herói será obrigado a adaptar-se aos costumes e às pessoas que o acompanham, entre as quais especialmente outros dois professores: um homem com quem trabalha na mesma escola e uma mulher empregada numa população um pouco maior. Ambos o farão questionar sua concepção dos outros e dele mesmo, pois, por mais seguro que esteja de si mesmo e de não precisar de ninguém, essa segurança logo se abalará.

O catalisador para muito do que se desenrola ao longo dos meses intermináveis de neve desta história é o relacionamento de Semet com uma jovem aluna, Sevim (Ece Bagci), de 14 anos, de quem ele gosta, até mesmo dando-lhe um presente quando volta à escola depois dos feriados. Ela também gosta dele, de uma forma infantil – a afeição de uma estudante por uma figura de autoridade amigável. Não é um choque, então, quando Semet é acusado pela escola de conduta pouco profissional após uma denúncia anônima. Ele nega, e a acusação logo é reprimida pelas autoridades locais, fazendo com que Semet se volte contra Sevim, que troca carinho por agressão.

A questão do comportamento inadequado não é o objetivo do filme; é deixada sem solução, mas é outro dado para a criação de um retrato mais completo/complexo deste homem – ele não é um monstro, mas alguém autodestrutivo e frustrado. O comportamento dele deixa muito a desejar – e deixa margem à reflexão, com o drama do diretor Ceylan construindo camadas de interesse, interações, conversas, eventos. “Ervas Secas” é tão sério quanto se esperaria de Ceylan. O drama é pontuado por uma série de imagens estáticas surpreendentes da população local - presumivelmente filmadas por Semet e sugerindo que ele não é apenas introspectivo - e há um momento de queda da quarta parede que é alarmante e ousado. É um filme rico e desafiador, uma nevasca de experiências e ideias.

DURAÇÃO DO FILME

Fala-se muito sobre a duração excessiva dos filmes deste cineasta – este em exibição no Ouro Verde tem 197 minutos. A maioria deles tem acima de três horas. Mas não são filmes “lentos”, mas sim “longos”, termos logicamente diferentes, embora possam ser confundidos quando aplicados a um filme. Nenhum deles é lento, mas permite que grande parte de suas cenas, principalmente conversas específicas, durem mais do que o normal: a ação não é suspensa, os personagens não ficam em silêncio, mas todo aquele dinamismo, em cada sequência, ocupa sempre mais imagens. E estas ações ou estes diálogos assumem um significado maior se comparados, talvez, aos de outras pessoas, em outros lugares do mundo, que têm um estilo de vida diferente. Daí que cada gesto, cada palavra seja importante... quando se vive na gélida e muito remota Anatólia. O filme tem mais de três horas, mas o espectador ganha isso tudo e muito mais com seu intrincado e gratificante estudo de personagem: um “canalha antipático” (como diz alguém no filme), um homem egoísta, falso, egocêntrico, misantropo.

No filme, cada palavra é importante quando se vive na gélida e remota Anatólia
No filme, cada palavra é importante quando se vive na gélida e remota Anatólia | Foto: Divulgação

INTENÇÕES SUGERIDAS

No entanto, o filme se recusa a moralizar indevidamente; em vez disso apenas mapeia suas ações muitas vezes desagradáveis e o efeito que elas têm sobre os personagens ao redor. Tudo isso se desenrola no estilo habitual de Ceylan, com longas cenas com muitos diálogos. Conversas prolongadas girando em torno de vários assuntos, de modo que pensamentos e intenções dos personagens são sugeridos em vez de declarados abertamente. Este pode ser um desses raros filmes a ganhar a designação de “romanesco” : escrita densa, embora seu enredo permaneça esparso e seus detalhes pessoais e ambientais, nítidos e evocativos. Do vento forte das planícies ao frio de uma casa apertada, o realizador capta a crueza deste local inóspito e como é habitá-lo, inclusive no que diz respeito aos diversos costumes e dinâmicas sociais e profissionais que regem o seu quotidiano.

Entre Dostoievsky e Tchekov, território russo que conhece muito bem, Nuri Bilge Ceylan escreveu e dirigiu uma obra extensa que fascina pela capacidade de captar e refletir sobre a vida. “Sou humano e penso que nada do que é humano me é estranho” – estas palavras do poeta latino Terêncio, inseridos no texto filme, cabem como uma luva no cineasta turco.

* O filme está em exibição no Cine Ouro Verde. Confira a programação de cinema no site da FOLHA