Aos 60 anos, radiante mas serena, a norueguesa Liv Ullman trouxe à mostra competitiva sua terceira experiência como diretora. A produção sueca ‘‘Trolosa’’(‘‘Infiel’’), baseada em roteiro autobiográfico de Ingmar Bergman, é um filme rigorosamente a quatro mãos e um espectro – o de Bergman, quem mais ? – pairando sobre nossas cabeças na sala de projeção. ‘‘Trolosa’’ é a história antes de um adultério, depois de um divórcio e o final de um drama. Em cena, na pele do ator Erland Josephson, o próprio Ingmar, tentando reconstruir a partir do fantasma de uma mulher esta página pouco lisonjeira de sua vida: quando, há muito anos, como diretor de teatro, iniciou uma relação com a mulher de seu melhor amigo.
É a análise minuciosa e sem piedade de comportamentos que a moral nórdica tinge de tragédia. Liv dirige – disseca, alguém poderia sugerir como alternativa mais rigosora – com elegância bergmaniana. Durante a coletiva, de novo a presença forte do mestre sueco, hoje com 82 anos. Liv fala do ex-marido sem ressentimentos, com respeito, quase veneração. E se confessa agora e para sempre um diretora.
Com calma e classe, observa que ninguém mais escreve dramaturgia pensando numa mulher sexagenária. Mas não é por isso que atua mais. Seu mundo agora é por trás das câmeras. Lena Endre, intérprete de teatro que faz Marianne, se candidata com boa chances ao prêmio de melhor atriz. Difícil, ver com frequência tal intensidade de expressão e sentimentos.
Mais asiáticos em desfile. O veterano japonês Nagisa Oshima (‘‘O Império dos Sentidos’’, ‘‘Furyo’’) está em competição com ‘‘Gohatto’’, co-produção anglo-franco-nipônica. Nada singular, partindo de Oshima, um drama de samurais homossexuais ambientado no século passado. O filme se situa em Kioto, 1865, época em que o shogunato está sendo substituído pelo Japão moderno.
Numa milícia reacionária de guerreiros, formada para manter a ordem antiga, alguns jovens samurais introduzem hábitos ‘‘subversivos’’, como a homossexualidade. ‘‘Gohatto’’, com belíssimas imagens e mais uma trilha preciosa de Ryuichi Sakamoto, é novamente o veículo para Nagisa Oshima falar sobre seus temas mais caros. Os seres que se realizam, se destroem – e se autodestroem através de um destino extremo. Neste 26º longa do diretor, de novo desfilam impulsos criminais e sexuais direcionados contra a ordem
estabelecida.
De Taiwan, o título é ‘‘Yi Yi’’( A One and A Two), sétimo longa de Edward Yang. Um drama familiar na opulenta e vazia Coréia contemporânea. Um bem- sucedido pesquisador de novas tecnologias na área de informática, na casa dos 40, entra em fase de questionamentos existenciais, de crises afetivas e profissionais. O reencontro fortuito com um amor da juventude lhe dá a chance de deixar tudo para trás e começar de novo. Durante a entrevista coletiva, falando aos jornalistas sobre seu longo e delicado filme, na verdade um bem arquitetado mosaico de relações humanas, Yang não traiu as origens e atacou de sabedoria oriental: ‘‘O que quero mostrar com meu filme é que o fato de ser jovem ou velho não muda muita coisa na vida das pessoas.
Todo mundo se pergunta se não merecia mais do que tem e se não teria direito a uma segunda chance na vida. Acho que o conflito e o paradoxo estão bem definidos: meu personagem, que trabalha com tecnologia de ponta, quase entra em pânico quando pensa em dar uma guinada na própria vida.’’
Uma comédia muito engraçada, agridoce mas resolutamente otimista. É o americano ‘‘Fast Food, Fast Women’’, do israelense Amos Kolek , que divide seu tempo entre Telaviv e Nova York. É uma espécie de sitcom talentosa em corte mais profundo. Numa Nova York de desajustados, jovens e velhos, que vive a garçonete Bella (Anna Thompson) e seu círculo de amigos mais ou menos ‘‘hopeless’’.
Entre desilusões amorosas e uma renitente alegria de viver, os personagens vão catalogando um doloroso e ao mesmo tempo hilário repertório de misérias e grandezas. O roteiro de Kolleck é de construção rigorosa, e os diálogos são, sem dúvida, os melhores que o cinema off Hollywood viu nos últimos tempos.
Uma outra comédia americana (aliás a terceira, incluindo ‘‘Nurse Betty’’ de Neil LaBute) em competição é ‘‘O Brother, Where Art Thou’’, não tão inspirada mas com qualidades mínimas que se pode esperar do humor especificamente pouco ortodoxo dos irmãos Coen, que já levaram uma Palma de Ouro em 91 com ‘‘Barton Fink’’.
Desta vez, Ethan Coen reescreveu livremente a ‘‘Odisséia’’ e colocou o herói na pele de Everett Ullysses McGill (George Clonney, se revelando um ‘‘clown’’ de dimensões quase épicas), patife presidiário e bonitão no ‘‘deep south’’ da América, década de 30, pós-depressão. Ele e dois companheiros fogem da prisão e revivem as aventuras do clássico de Homero, inclusive com direito a um ciclope vivido por John Goodman e uma Penélope furiosa encarnada por Holly Hunter. O resultado desta mistura de farsa, musical, fantasia e comédia termina meio atravessado, não muito digerível.
Há ainda uma dose de Frank Capra, o que é supreendente para o estilo mais ‘‘heavy’’ dos Coen. O título original foi extraído de um filme de 1941 de Preston Sturges, ‘‘As Viagens de Sullivan’’. George Clooney, que já domina o filme, não deixou por menos e monopolizou a coletiva. Sem esforço ou estrelismo, mostrou que sua veia cômica pode ser explorada a qualquer momento.
E uma terceira comédia, desta vez russa. Outro veterano de Cannes, Pavel Lounguine, que se impôs no cenário internacional com ‘‘Taxi Blues’’, em 1990. Agora ele assina ‘‘Le Noce’’(As Núpcias), uma espécie de filme-indagação sobre o destino dos russos no próximo milênio.
Ao reunir duas famílias e uma comunidade do interior (Lipki, a 200 quilômetros de Moscou) para uma festa de casamento, Lounguine quer no fundo saber o que vai ser feito do dia-a-dia dos russos, a família, o amor, a infância, a amizade. Ele questiona, sempre em chave de humor, sobre o destino dos velhos costumes e valores. O ritmo do filme é quase alucinante, como se as dúvidas que atormentam o diretor tivessem a urgência do instante.
Dramas de época inspirados pela literatura. Os franceses adoram, aplaudem. O resultado é sempre mais ou menos o mesmo. Cinema sólido, uma elegância romântica mas fria, estupendos valores de produção, elenco com múltiplas chances de brilho. Isto é ‘‘Les Destinées Sentimentales’’, de Olivier Assayas, com Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart e Charles Berling.
Baseado em romance de Jacques Chardonne, o filme é uma superprodução sobre uma França de começo de século, apanhada pela convulsão social, entre o velho e o novo, a guerra e as transformações sentimentais. Nada excepcional, mas a bandeira do país sai bem representada.