Juliana Barbosa: "Nossa casa era conhecida como a embaixada carioca de Londrina, na vitrola, tocava samba quase todo dia"
Juliana Barbosa: "Nossa casa era conhecida como a embaixada carioca de Londrina, na vitrola, tocava samba quase todo dia" | Foto: Gustavo Carneiro

Filha de pais cariocas e apaixonados pela cultura do samba, Juliana Barbosa se tornou uma pesquisadora acadêmica especializada no universo dos bambas. As pesquisas realizadas por ela resultaram em verdadeiros tratados sobre a cultura que envolve o mais brasileiro dos ritmos.

Com título de pós-doutorado obtido pela Universidade Estadual de Londrina, a londrinense transformou sua tese de doutorado no livro "Nelson Sargento e as redes criativas do samba", publicado 2014.

Leia a seguir um artigo escrito por ela com exclusividade para a FOLHA, Juliana narra episódios que viveu com alguns seus maiores ídolos. Encontros históricos que revelam um pouco do universo criativo de figuras lendárias e inesquecíveis, como o que aconteceu com Nelson Sargento, sambista que morreu há apenas dois meses, aos 96 anos, vítima de Covid-19.

DESDE O BERÇO EMBALADA NO SAMBA

“Costumo dizer que bamba é quem é craque no samba. Mais que saber tocar, cantar ou dançar, significa viver o samba como uma cultura, um jeito de ver o mundo, um modo de beber e comer, uma maneira de lidar com as alegrias e tristezas da vida. Eu nasci numa casa de bambas, no bairro do Irajá, subúrbio carioca. Abdon, meu pai, era folião do bloco Bafo da Onça e frequentava a quadra da Mangueira. Fátima, minha mãe, era do bloco rival, o Cacique de Ramos, e gostava da Portela. Rivalidades carnavalescas à parte, os dois desfilam juntos pela avenida da vida há quase cinquenta anos.

Eles vieram para o Paraná em 1976, quando eu tinha menos de um ano de idade. Na mala, trouxeram esperanças e muito amor pelo samba e pelo carnaval. Em pouco tempo, nossa casa ficou conhecida como a embaixada carioca de Londrina. Na vitrola, tocava samba quase todo dia. Nos finais de semana, as rodas de samba tinham sempre uma boa iguaria preparada pela minha mãe, que fazia feijoada, cozido ou rabada. Meu pai cuidava da temperatura da cerveja.

Dou um salto de quase três décadas pra dizer que em 2004, decidi transformar essa vivência em saber científico. E não é que deu samba! Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado sobre o tema. Cada texto lido aumentava minha compreensão sobre a riqueza da cultura popular brasileira. Cada passo da pesquisa de campo ampliava minha vivência e meu acervo de boas histórias para contar.

MAL ENTENDIDO COM MARTINHO DA VILA

Uma delas foi com Martinho da Vila. Fui até o Rio de Janeiro para entrevistá-lo, mas por conta de um imprevisto ele não conseguiu me atender. A assessora do artista me ligou dizendo que ele fazia questão de me atender em outra oportunidade. Confesso que achei um pouco improvável. Alguns meses depois, no entanto, ela me ligou avisando que o sambista viria a Londrina para um evento e iria me conceder a entrevista.

Martinho da Vila foi bastante atencioso, disse que gostava de contribuir com pesquisas acadêmicas. Autor de mais de 20 livros, comentou que algumas de suas obras poderiam contribuir com meus estudos. Na despedida entreguei-lhe um cartão e no dia seguinte ele ligou na minha casa. Minha mãe atendeu e não acreditou, ficou brava, disse que tinha mais o que fazer e quase desligou o telefone. Desfeito o mal entendido, os dois riram muito e ele avisou que deixaria alguns de seus livros para mim, na portaria do hotel. Detalhe: um deles veio com dedicatória para a dona Fátima. Ela ficou toda prosa.

A ELEGÂNCIA DE BIRA, DO FUNDO DE QUINTAL

Foi com a minha mãe que aprendi a admirar o Fundo de Quintal. Cresci com a plena consciência da dimensão desse grupo na cultura brasileira. No meu dicionário, o Ubirany, mais conhecido como Bira, líder do grupo e presidente do Cacique de Ramos, sempre foi sinônimo de elegância. Cheio de estilo no modo de se vestir e tocar pandeiro, ele tem um jeito único de sambar. Em agosto de 2005 eu viajava para o Rio de Janeiro com o coração a mil, para apresentar pela primeira vez meus estudos sobre o carnaval carioca em um congresso. O coração acelerou um pouco mais no aeroporto de São Paulo, quando vi um sapato cheio de estilo e um disco de platina ao meu lado. Sim, era o Bira. Respirei fundo e tentei disfarçar.

Pegamos o mesmo voo e resolvi cumprimentá-lo. Ele me convidou para sentar ao lado dele, já que a poltrona estava vazia. Nessa hora eu não disfarcei, aceitei imediatamente e conversamos por quase uma hora. Fui contando a história da minha família com o samba e a nossa admiração pelo grupo. Ele anotou a data de aniversário dos meus pais e gentilmente ligou para dar os parabéns aos dois naquele ano . Quando desembarcamos, Bira chamou um táxi para ele e outro para mim, me ajudou com as malas e desejou sucesso no congresso O significado de elegância foi atualizado para mim naquele momento.

VISITA AO UNIVERSO DE NELSON SARGENTO

Achei que com o tempo eu fosse me acostumar com esses encontros. Mas em 2010, ocasião em que entrevistei Nelson Sargento para o doutorado, o frio na barriga começou ainda no trajeto até a casa do artista. Quando entrei no apartamento decorado com o antológico violão que ele tocou no espetáculo Rosa de Ouro e fui recebida pelo baluarte da Mangueira, entendi que não iria me acostumar. Respirei fundo para que o meu lado cientista pudesse entrar em cena.

Em meio à entrevista, perguntei se ele guardava rascunhos e anotações de seu processo criativo. Expliquei que esses documentos constituem a base dos estudos sobre a estética do movimento criador. Após me ouvir atentamente, ele foi até outro cômodo da casa e voltou cantarolando: “Tá legal, eu aceito o argumento”. Trouxe em mãos seu caderno de anotações, uma verdadeira incubadora de ideias. E quando eu já estava de saída, ele pegou o violão e cantou um samba inédito. Achei encantador. Depois, em 2014, ele esteve presente no lançamento do meu livro “Nelson Sargento e as redes criativas do samba”, no Rio de Janeiro. Aos 90 anos, ele participou ativamente do evento, autografando os exemplares.

NA RODA DA VIDA

Ao longo dos anos fui colecionando encontros memoráveis. Caminhando numa tarde pelo bairro da Lapa, conversei com Monarco, presidente de honra da Portela. Tive a oportunidade de almoçar com Nei Lopes, cantor e autor de mais de 40 livros sobre a cultura afro-originada. O sambista Arlindo Cruz, quando veio a Londrina, chamou minha mãe de Fatinha - o apelido ficou até hoje. Teve um encontro que não aconteceu, com Joãosinho 30, que sofreu um AVC poucos dias antes da entrevista agendada. Também encontrei Moacyr Luz, fiz oficina com Carlinhos de Jesus e estive com Dona Zica. Mas sei que nunca vou me acostumar."

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