Ninguém pode acusar o francês Jacques Audiard de ser um realizador repetitivo, de fazer sempre o mesmo filme, de ser incapaz de variar suas formas ou de observar sempre a realidade a partir do mesmo ponto.

Com uma filmografia inclassificável, graças, em grande parte, a um incontido desejo de exploração de humanidades desde que iniciou a carreira como roteirista na década de 1980, ele percorreu os caminhos do thriller , do drama de prisão, do melodrama austero, do cinema social, do western, do retrato geracional e agora ousa no transmusical com “Emilia Pérez”, filme imensurável que se desenrola na tela com a força de uma torrente arrebatada, pronta para levar tudo consigo.

Este produto inrotulável funciona como um clarão indisciplinado de imagens excessivas em seu recital estético, que envolve o olhar do espectador a partir do exato momento em que a escuridão da sala de cinema é preenchida com as primeiras luzes da projeção.

FILME CORAJOSO

Audiard dá um salto no vazio, sem rede de segurança, tão corajoso quanto suicida, porque confia tanto no potencial inebriante de seu filme que não economiza recursos no planejamento da encenação: figurinos, iluminação, cenários, montagem e música andam de mãos dadas para configurar um jogo de cores e formas cuja beleza não poucas vezes chega a dominar totalmente a narrativa, no melhor sentido da palavra.

Mas, apesar da força incomensurável das suas imagens e da atenção que o realizador lhes dá, “Emilia Pérez” não é masturbação estética desprovido de discurso, nem uma ópera hipnótica e vazia. Antes, muito pelo contrário. Mais ou menos tão surpreendente como o Yorgos Lanthimos de “Pobres Criaturas”, Audiard combina substância e forma como poucos fizeram nos últimos anos, com a ideia de que sua impressionante exposição estética está sempre ligada a abordagens éticas profundas.

O filme conta a história de uma advogada (Zoe Saldana) que, um dia, recebe apetitosa proposta do chefe de um dos maiores cartéis de 'drog dealers' do mundo: se ela o ajudar a desaparecer do mapa para realizar a transição de gênero que desejou desde sempre, receberá quantia imensurável de dinheiro que lhe permitirá deixar o obscuro escritório de advocacia onde, para seu pesar, trabalha defendendo assassinos sexistas.

A partir desta premissa, Jacques Audiard monta uma viagem emocional de profundidade desarmante, que, na realidade, é apenas uma desculpa para refletir sobre a possibilidade de recomeçar a vida quando o peso do passado é quase insustentável, quando os erros criam uma coroa de espinhos que arranca a esperança. Através de uma protagonista que, ao tomar consciência dos seus erros passados, se propõe a corrigi-los, Audiard não para de fazer ao espectador uma série de perguntas sobre perdão, aceitação da culpa e assunção de responsabilidades, para as quais não oferece qualquer tipo de resposta. Por trás disso, mostra de forma perspicaz e refinada as estratégias de branqueamento que as grandes empresas realizam com a intenção de mudar tudo para que tudo permaneça igual, a forma como o sistema subjuga os cidadãos, forçando-os a aceitar empregos que contradizem radicalmente o seu código de valores, e a impossibilidade de escapar à violência (ou a qualquer outra dinâmica destrutiva) quando esta está na própria raiz do ambiente em que se desenvolve.

IDEIAS RADICAIS

“Emilia Pérez” é um filme felizmente artificial que aborda o espectador com uma infinidade de ideias radicais que nem sempre se concretizam, que ostenta uma narrativa irregular submetida ao seu belo e perturbado barroquismo, que na tentativa de se rebelar contra tudo não raro chega a se dispersar. Por isso é também uma obra perfeitamente imperfeita, que exala vida e frescor através de cada uma de suas imagens, que propõe uma viagem surpreendente e emocionante, que materializa a loucura de sua trama em imagens igualmente malucas, que oferece números musicais duvidosos e vibrantes (e brilhantes no uso do rap) que não deixam nenhum espectador indiferente, e que comove em profundidade graças, sobretudo, às atuações impressionantes de Zoe Saldana e Karla Sofia Gascón. “Emilia Pérez”, por muitas razões, pertence a esse grupo de filmes transbordantes que pagam o preço da irregularidade, da desordem intermitente. Mas para oferecer um espetáculo sem igual.

Por fim, uma palavrinha que, para mim, vai servir como pá de cal nesta polêmica em pauta que o filme decididamente não merece. Munidos das mais variadas e letais armas, os marqueteiros seguem agindo sem limites na criação de climas rarefeitos pré-Oscar. E o que é mais danoso: com aval das midias oficiais e oficiosas que, sem saber sabendo, constroem o ninho de víboras e alimentam a mesquinharia, a intolerância, a inveja, o preconceito.