Chico Buarque escolheu a comicidade para tratar de um país abalado por tempestades éticas, políticas, morais e ideológicas
Chico Buarque escolheu a comicidade para tratar de um país abalado por tempestades éticas, políticas, morais e ideológicas | Foto: Fábio Motta/ Estadão Conteúdo

Ao ganhar o Prêmio Camões em maio de 2019, Chico Buarque declarou que o novo romance que estava concluindo seria sobre o Brasil atual. O leitor poderia esperar um romance sisudo retratando um país abalado por nebulosas tempestades éticas, políticas, morais e ideológicas. Mas Chico Buarque escolheu a comicidade para tratar do assunto.

“Essa Gente”, que acaba de ser lançado pela editoria Companhia das Letras, difere de outras narrativas do escritor e compositor carioca. Faz uso de uma narrativa fragmentária próxima de registros de diários enigmáticos.

“Essa Gente” traz a trajetória de Manuel Duarte, um escritor carioca em franca decadência criativa e financeira. Ganhou fama e dinheiro escrevendo romances históricos, mas vive um período de vacas magras. Possui duas ex-mulheres bem de vida e um filho adolescente que não lhe dirige a palavra.

O personagem perambula pelas ruas do Rio de Janeiro tentando reatar com as duas ex-mulheres, estabelecer algum diálogo com o filho, conseguir uma grana emprestada, arranjar algum adiantamento de trabalho e rever velhos amigos.

Tudo que interessa em “Essa Gente” não é apresentado de maneira direta. Num país fraturado, Chico Buarque prefere apresentar as questões mais relevantes de forma indireta. Apesar de propor reflexões cruéis, utiliza a comicidade para abordá-las.

Em suas perambulações, Manuel Duarte cruza com um pastor evangélico que, em parceria com um maestro italiano, percorre favelas procurando garotos de vozes límpidas. O objetivo é castrar os meninos para abastecer o mercado internacional de canto lírico.

Em suas andanças, trava amizade com um salva-vidas que reside num morro onde a população morre de medo que uma grande pedra despenque durante as chuvas e leve as casas morro abaixo.

Também cruza com um sujeito que comanda um escritório advocatício milionário e gosta de espancar mendigos nas noites cariocas. E mesmo sem estar presente na vida do filho, assiste o garoto sofrer bullying na tradicional escola por ser filho de um pai com “inclinações de esquerda”.

Manuel Duarte pode ser descrito como um personagem ensimesmado em seu próprio movimento individual. Suas grandes questões não são políticas, nem ideológicas, nem éticas ou morais. Mas invariavelmente ele tromba com algumas delas como quem tromba com um transeunte numa rua movimentada.

E toda vez que tromba com essas questões, sejam em fatos ou acontecimentos, simplesmente segue em frente. Apenas passa pelas questões. Apenas passa pelas pessoas envolvidas. Ausente, ou anestesiado, a experiência com a realidade coletiva não lhe causa nenhuma comoção. Nenhum entendimento.

“Essa Gente” parece dizer que, no país dos dias de hoje, quem tem grana não gasta tempo pensando em sobrevivência. E quem não tem grana gasta muito tempo pensando em sobrevivência. Ou seja, quem tem grana tem muito tempo para pensar na própria existência. E quem tem pouca grana tem muito pouco tempo para pensar na própria existência.

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. | Foto: Reprodução

Serviço:

“Essa Gente”

Autor – Chico Buarque

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 200

Quanto – R$ 49,90

Chico lê trechos de Essa Gente

(Fonte: site da Companhia das Letras)