O ano de 2021 foi especialmente glorioso para o japonês Ryusuke Hamaguchi, que apresentou não um, mas dois filmes que ficaram célebres para sempre : “A Roda da Fortuna e da Fantasia” (Urso de Prata na Berlinale) e “Drive My Car” (premiado em Cannes, nos BAFTAs ingleses, Globo de Ouro, Oscar,... entre outros). “O Mal Não Existe” (2023) foi seu passo seguinte. E com este filme, em exibição em Londrina, no Cine Ouro verde, de segunda (9) até quarta-feira (11), ele apenas confirma ser um dos realizadores mais insinuantes e imprevisíveis do cenário cinematográfico atual.

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Agora, Hamaguchi parece ter experimentado novos tons, tramas e sub-tramas em seu cinema, desconcertando um pouco mais o espectador ao longo de um drama seguro que substitui a soma de suas partes, um retrato lírico da familia e da comunidade e uma consideração matizada sobre a ética da evolução e do aperfeiçoamento da terra.

A abordagem básica é relativamente simples, e pode até ser familiar: o quotidiano dos habitantes de uma pequena cidade perto de Tóquio é ameaçado pelo lobby do turismo rural, que está de olho na natureza impressionante que os rodeia. A intenção de criar um local de “glamping” (uma aberração surgida da mistura do conceito de camping com o luxo, ou glamour). Neste embate que parte de querer capitalizar o que é puro e, portanto, também tirá-lo de quem o possui humildemente, gera-se uma tensão evidente, que aos poucos vai deixando o ar rarefeito em “O Mal Não Existe”, até o seu desenlace.

Filme traz uma pequena comunidade perto de Tóquio ameaçada pelo lobby do turismo rural e seus desdobramentos
Filme traz uma pequena comunidade perto de Tóquio ameaçada pelo lobby do turismo rural e seus desdobramentos | Foto: Divulgação

Mas um conflito que poderia ser focado de forma mais ou menos óbvia torna-se neste entorno algo emaranhado e quase impenetrável, como Takumi (o excelente Hitoshi Omika). Ele atua como uma espécie de “faz-tudo” das pessoas do local, à disposição de todos e, portanto, merecedor do seu respeito. Takumi é homem reservado e geralmente bastante solitário, exceto quando está com sua filha Hana (Ryô Nishikawa), que é uma luz em sua vida (mesmo esquecendo constantemente de buscá-la depois da escola). Sempre que pode, ela vai sozinha explorar os segredos escondidos da exuberante floresta que cerca sua casa. Pois é nesta floresta que está a essência do lugar, nos seus esquivos cervos, na sua variedade de rica vegetação e nos seus lagos congelados.

Logo, claro está, temos o outro lado da moeda, nos dois representantes da empresa “glamping”, que são mais atores que estudaram o papel de representantes do capitalismo predador do que qualquer outra coisa. Dois manequins defendendo alguns figurões que, obviamente, não só não se rebaixarão para serem vistos na cidade, como também não aceitarão as suas dúvidas e preocupações quando forem informados de que a fossa séptica exigida pelo parque de campismo ameaça manchar a preciosa água pura que seu rio carrega. Todo aquele mundo rural, com os seus rituais e modos de ser, parece tão estranho aos urbanos que por vezes o filme se torna uma paródia da sua visão idealizada, mais uma vez desconcertante em seu tom.

E a forma de Hamaguchi mostrar tudo isso é através de poucos mas eficazes recursos, tanto em imagem quanto em som. Aí temos uma sequência de abertura minimalista, mas chocante, que serve como longo e esclarecedor preâmbulo visual/musical para o que está por vir. É importante destacar este detalhe porque o papel da música da compositora Eiko Ishibashi (e do silêncio) é fundamental em “O Mal Não Existe” . O título do filme implica que, naquele lugar puro e simples, naquela ordem equilibrada entre habitantes, animais e natureza, não há espaço para o Mal (portanto, na sua forma mais complexa).

Em geral, parece ser assim. Mesmo no tratamento tenso com os visitantes de Tóquio, há uma cordialidade pouco convincente que acaba prevalecendo. Também na evolução que veremos nestes dois personagens totalmente estranhos, parece que a bondade da paisagem se transfere para a sua forma de ver o mundo. Mas, como prevê aquele emaranhado de árvores logo no início, a realidade é muito mais complexa e, por vezes, incompreensível. Em sua reta final, o filme sofre uma mutação inesperada e consegue mudar completamente o sentido daquilo que o precedeu. Mostra-se o outro lado do belo, que é o terrível, o sinistro, o violento. E, acima de tudo, o epílogo deixa o espectador desarticulado, abalado e com um quebra-cabeça quase concluido, sem saber se deve colocar a última peça. Ou não.