Em livro, Leonora Carrington, a mulher das plumas sangrentas
Primeira antologia literária da pintora e escritora inglesa publicada no Brasil, “Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias”, traz a linguagem do surrealismo em sua genuinidade
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 25 de agosto de 2021
Primeira antologia literária da pintora e escritora inglesa publicada no Brasil, “Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias”, traz a linguagem do surrealismo em sua genuinidade
Marcos Losnak
Você pensa em uma palavra. Logo em seguida a palavra que você pensou aparece na língua verde de um cachorro com penas de maritaca na cauda.
A palavra que você pensou está lá, mas não é a mesma, ela escorre pela saliva do cão. Uma saliva que, ao cair na terra, forma um rizoma de raízes que criam um novo chão de dentes quebrados.
A saliva do cão é sugada por dois quatis que repousam nos braços de mulheres nebulosas que vestem roupas tecidas por sons de piano.
A palavra ainda está lá, mais é outra, agora habita um riacho em que quatis evacuam luas cheias. Um riacho no qual está imerso a palavra em que você pensou. Uma palavra que o mundo não sabe que você pensou, mas sabe como transformá-la em sentido.

Tudo isso pode parecer muito estranho. Muito estrambótico ou estapafúrdio. Mas é típica sensação que o leitor pode experimentar nas páginas de “Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias”, primeira obra literária da pintora surrealista Leonora Carrington (1917-2011) publicada no Brasil.
Lançada pela editora Iluminuras, o volume é uma antologia organizada pela professora brasileira Dirce Waltrick do Amarante e pela pesquisadora mexicana Nora M. Basurto Santos. A obra reúne 10 contos, escritos entre 1937 e 1970, que trazem todas as características da linguagem e da estética surrealista. Histórias narradas que se transformam a cada momento, a cada frase inundadas pela imaginação sem freios ou reservas.
No conto “A Debutante”, por exemplo, a autora narra a história de uma jovem de 15 anos que não deseja participar de seu baile de debutante. Para fugir da obrigação, convence uma hiena a assumir seu lugar. Veste o animal com seu vestido e salto alto. Ensina o bicho a andar e se comportar em público. E para ter um rosto mais humano, aceita que a hiena mate sua empregada e utilize a o rosto decepado da serviçal como máscara. Durante o baile o bicho consegue ludibriar a todos, mas quando começa a sentir fome, retoma seus instintos animalescos e transforma a festa em caos.
No conto “Et In Bellicus Lunarum Medicalis”, Leonora Carrington narra a história de um país que recebe um presente inusitado de outro país: uma equipe de ratos amestrados capazes de executar cirurgias em seres humanos muito melhor do que os próprios médicos. Nada mais do que uma equipe de ratos altamente especializados em todo tipo de cirurgia minuciosa. Como as autoridades os hospitais desconfiam de tal inovação, deslocam a equipe de ratos para atuar em hospitais psiquiátricos.

Leonora Carrington nasceu na Inglaterra em 1917, no seio de uma família rica e aristocrática. Educada para se casar com um homem da nobreza, teve seu primeiro contato com o Surrealismo aos 17 anos, ainda em Londres. Com 19 anos consegue a autorização dos pais para estudar artes plásticas em Paris. Então sua vida ganha novos rumos.
Em Paris conhece artistas como Pablo Picasso, Salvador Dalí, André Breton, Man Ray, Joan Miró, Luis Buñuel e Marcel Duchamp. Conhece também o pintor alemão Max Ernst, um dos grandes pintores do Movimento Surrealista na época. Num caso de amor à primeira vista, Leonora Carrington e Max Ernst e apaixonam e passam a viver juntos numa relação de comunhão entre amor e arte.
Durante a Segunda Guerra, Max Ernst é preso e deportado para os campos de concentração da Alemanha nazista. Desesperada com o fato, Leonora sofre um surto psicótico e é internada pela família no Manicômio de Santander, na Espanha. Submetida a todo tipo de terapias experimentais cruéis e violentas, consegue fugir para Lisboa, onde se refugia na Embaixada do México. Para ter acesso a documentos oficiais para chegar aos Estados Unidos, se casa com um diplomata mexicano.
Após uma breve temporada em Nova York, Leonora se mudou para o México com 26 anos de idade. Abraçando o México como o território para a criação de suas pinturas e esculturas, viveu no país até falecer, em 2011, aos 94 anos de idade.
Uma das raras mulheres dentro de um movimento predominantemente masculino, Leonora Carrington produziu toda sua obra dentro da estética do Surrealismo. Apesar de ser mais conhecida como pintora e escultora, escreveu mais de uma dezenas de livros, o primeiro deles lançado em 1938, o último em 1988. “Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias” reúne uma seleção de seus textos mais genuínos.

Serviço:
“Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias”
Autora – Leonora Carrington
Editora – Iluminuras
Organização – Dirce Waltrick do Amarante e Nora M. Basurto Santos
Tradução – Dirce Waltrick do Amarante
Páginas – 144
Quanto – R$ 49

