Quando o ser humano chega a uma situação-limite, sempre toma decisões extremas. Um homem em perigo. Uma mulher com fome. Uma criança com medo.

Em seu novo livro, “Carne Viva”, o dramaturgo londrinense Renato Forin Jr. traz as inquietações de Elizabeth, uma mulher que, diante da extrema penúria, decide vender o próprio corpo para um instituto de anatomia. Para conseguir comer e continuar sobrevivendo, precisa vender a única coisa que possui. Em sua peregrinação para fechar o negócio, Elizabeth cruza com diferentes personagens que representam a própria construção da miséria em que vive.

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Para criar “Carne Viva”, Forin se debruçou sobre a obra do dramaturgo austro-húngaro Ödön von Horváth (1901-1938), em especial em sua peça intitulada “Fé Amor Esperança” (em alemão “Glaubeliebehoffnung”), escrita em 1932. Segundo o autor, o interesse estava no fato de que Horváth “não separava o político do íntimo, mostrando como estas esferas são indissociáveis, ou seja, todos os fenômenos da vida, por mais prosaicos e cotidianos, são políticos – uma tendência bastante contemporânea”.

O livro tem lançamento marcado para hoje e amanhã (dias 28 e 29), 19 horas, na Biblioteca Municipal de Londrina, acompanhado por leitura dramática realizada pelo grupo Agon Teatro e atores convidados.

A seguir, Renato Forin Jr fala sobre “Carne Viva”, obra de dramaturgia que aborda a miséria e a crise social que normalmente antecedem o florescimento de regimes totalitários.

Segundo Renato Forin Jr.: a peça "Carne viva" toca  "no micropoder dos fiscais, dos chefes, dos oprimidos que esquecem sua condição para se colocarem no lugar do opressor"
Segundo Renato Forin Jr.: a peça "Carne viva" toca "no micropoder dos fiscais, dos chefes, dos oprimidos que esquecem sua condição para se colocarem no lugar do opressor" | Foto: Fábio Alcover/ Divulgação

“Carne Viva” é uma tradução? Uma adaptação? Uma reescritura livre? Ou tudo ao mesmo tempo?

Utilizo o termo “reescritura”, porque, teoricamente, ele comporta as ideias de tradução e adaptação, sem perder de vista uma larga margem de invenção. A peça de Horváth, é a matéria-prima essencial, sobre a qual desenvolvi minuciosa pesquisa de forma e conteúdo – afinal, é o primeiro trabalho brasileiro a tomar como referência a obra deste escritor austro-húngaro que tem vasta fortuna crítica na Europa. Entretanto, como “autor-rapsodo”, opero sobre ela um jogo de despedaçamento e costura (“rapthein”, em grego, significa “coser”) que a coloca em fricção com outros textos e contextos, além, claro, de praticar uma dicção própria. Está aí o trabalho autoral que reveste a peça de frescor e de sentidos outros para o leitor ou espectador do Brasil do século 21. Escrevo o posfácio do livro para explicar um pouco sobre este procedimento, chamado no teatro de “drama rapsódico”, e que, por meio da linguagem citacional, é também uma das tônicas da literatura contemporânea.

O que tem em “Carne Viva” de Ödön von Horváth e o que tem de Renato Forin Jr.?

Depois de conviver tanto tempo com Horváth em pesquisa teórico-prática – entre pedaços de rascunho, práticas na sala de ensaio e diálogos com o Prof. Alexandre Flory, que fez a consultoria de tradução – é difícil desenhar os limites. Gosto de pensar neste texto como um palimpsesto, ou seja, como se escrevesse sobre os papiros originais, fazendo anotações, completando frases, riscando cenas e inventando outras.

Toda a fábula de base é de Horváth e busco também uma compreensão e manutenção de suas estruturas formais – que, aliás, são profundamente antenadas com o teatro contemporâneo. Da minha parte, expando historicamente a reflexão sobre a máquina ideológica e assassina que o autor pressentiu com a ascensão do nazismo e que vimos se expandir pelo globo nas décadas seguintes. Implico ainda na trama de “Carne Viva” aspectos ligados às chagas da história colonial brasileira, como o assassinato de jovens negros na periferia, as diferenças sociais, a banalidade da violência, a corrupção endêmica e o consumismo irrefletido, criando, para isso, outros personagens. Em termos formais, deixo o texto transbordar, além da centralidade dramática daquele autor, para aspectos épicos e líricos – o que é uma característica pessoal.

Embora Horváth tenha criado o texto em 1932, a peça parece ter sido escrita nos dias de hoje. Por que “Carne Viva” parece profundamente atual?

Temos falado sobre os temas da peça, ligados à opressão e ao poder, mas precisamos também ressaltar a vanguarda da percepção da estrutura político-ideológica por Horváth e sua perspicácia no entalhe dramatúrgico. Ele teve contato com Brecht,

mas desenvolveu um teatro político de timbragens próprias, antecipando características que se tornariam paradigmáticas décadas mais tarde. Exemplo disso é a fragmentação da ação central e a interface entre o íntimo e o político, muito presentes na dramaturgia atual. Digo no livro que Horváth obtém, de suas penetrantes cenas curtas, uma espécie de “silêncio dialético”, pois ele não apela para recursos narrativos convencionais ou estratégias de distanciamento, mas encerra o absurdo das contradições sociopolíticas nas margens do diálogo interpessoal, provocando o leitor ou espectador. O teórico francês Jean-Pierre Sarrazac classifica Horváth como “cotidianista” e identifica nele uma espécie de paternidade para dramaturgos que viriam no pós-guerra, como Beckett.

Obra do dramaturgo austro-húngaro Ödön von Horváth, de 1932, foi a base do trabalho de Renato Forin Jr.
Obra do dramaturgo austro-húngaro Ödön von Horváth, de 1932, foi a base do trabalho de Renato Forin Jr. | Foto: Reprodução

Que conexões você estabelece entre a época em que a peça foi originalmente criada e os dias de hoje?

A relação entre os dois contextos é o principal ponto de inflexão do livro. Por isso, o fato de o texto original e a reescritura estarem numa zona nebulosa, como disse, é também um dado estético que faz pensar sobre o presente. Na rubrica inicial de

“Carne Viva”, ambiento a história nos “vários cômodos do abatedouro do mundo”, numa “crise social que antecede os regimes de abate”. Presenciamos nos últimos anos, mundo afora, uma nova onda de regimes de força, pautados no ufanismo e no militarismo, que se aproveitam da crise social e econômica ou da desinformação da sociedade, tal qual aquele ambiente da República de Weimar. A faminta e desempregada protagonista Elisabeth vende seu corpo lá e venderia agora, talvez mais

barato. A marcha patriótica que passa impávida ante o seu cadáver morto de fome, idem. O jogo de interesses individuais e coletivos que move todas as personagens em todas as cenas levanta uma questão: a sanha do homem em autodestruição é um fato da sociedade capitalista ou uma condição ontológica?

Para continuar sobrevivendo, a protagonista de “Carne Viva” precisa vender o corpo para um instituto de anatomia. O que isso representa?

É uma metáfora do movimento dialético da sociedade que pode se projetar em muitas medidas na nossa vida. Mas é também – e principalmente – um acontecimento real, signo do desespero humano quando se chega ao limite. Horváth, na década de 1930, escreveu a história em diálogo com Lukas Kristl, um jornalista que cobria acontecimentos policiais e da Justiça, e que conhecia a personagem Elisabeth real. Na reescritura, também tensiono a ficção com dados da realidade. Desde meus primeiros planejamentos para “Carne Viva”, pensava na imagem de ossos espalhados pelo cenário. Chegou a pandemia, o país voltou para o mapa da fome, e ocorre esta infeliz coincidência: uma das imagens que mais me impactaram foi das pessoas na fila de frigoríficos para disputar ossos. Abro a peça com uma mulher nesta condição, clamando por ossos para outra faminta, Elisabeth.

“Carne Viva” é uma obra sobre a miséria e o poder?

Exatamente. A peça toca nas mil faces obscenas dessas duas palavras, que estão, por um lado, sob aquilo que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”. O micropoder dos fiscais, dos chefes, dos oprimidos que esquecem sua condição para se colocarem no lugar do opressor. Mas a intriga também traz a representação dos três poderes formais: um juiz irresponsável, um vereador violento que quer liquidar a população marginalizada, a Secretaria de Bem-Estar Social que submete os usuários a

péssimas condições. Todas essas são formas de miséria humana, de vazio da sensibilidade, mas há sobretudo a grande e inadmissível miséria da fome – o prato cheio dos oportunistas de agora e de outros tempos.

Imagem ilustrativa da imagem Em livro, as íntimas relações entre a miséria e o poder
| Foto: Reprodução

Serviço:

“Carne Viva”

Autor – Renato Forin Jr.

Editora – Edição do autor

Páginas – 124

Quanto – R$ 25

Patrocínio – Promic

Onde Encontrar – A partir de janeiro na Olga Livraria (R Pio XII, 313), Mirian

Papelaria (Av. Maringá, 119) ou pelo instagram @renatoforin

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Lançamento:

Quando – Dias 28 e 29 de dezembro (quarta e quinta), às19 horas

Local – Biblioteca Municipal de Londrina (Av. Rio de Janeiro, 413)

Leitura Dramática – Participação de Danieli Pereira, Álvaro Canholi, Antonio Jr., Aurélio Pereira, Beto Passini, Eliete Vanzo, Fatinha, Raíssa Bessa, Reinaldo Zanardi, Antonio Mariano Jr., Marika Sawaguti e Renato Forin Jr.

Quanto – Entrada gratuita

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