Filho de uma dona de casa paranaense branca e de um pequeno comerciante gaúcho negro, o professor universitário aposentado Ari Cândido Fernandes - morador de um apartamento no Sumarezinho, no Distrito de Pinheiros, na capital paulista – já era um jovem de vida intensa quando trocou Londrina pelo mundo, naquele crepúsculo efervescente dos anos 1960.

Não saiu por vontade própria. Foi por medo de cair nas garras da repressão, mais afiadas do que nunca com o recente aval do Ato Institucional número 5.

Os pesados rolos de “São Paulo, Sociedade Anônima”, clássico assinado por Luís Sérgio Person (1936-1976), trazidos da Boca do Lixo em ônibus de linha e desembarcados nas plataformas da antiga rodoviária, chamaram a atenção da polícia política. “Ia regularmente para São Paulo me abastecer de filmes novos. Quando devolvia um, pegava outro”, conta.

Para os militares, o cineclubismo que praticava no Centro Acadêmico da Faculdade de Direito fazia rimar paixão com subversão.

A pele negra o tornava uma presa fácil para o sistema. Entretanto, o brilho presencial de Ari já lhe dava uma reputação redentora.

Sim, ele “caiu”, como se dizia naqueles anos de chumbo, mas se levantou com uma avalanche de telefonemas dos colegas de cineclube pedindo indulto ao “garoto”.

Sem dar sopa para o azar, vislumbrando o suplício de um pau de arara na próxima queda, pagou a primeira prestação do seu desterro. Foi viver em Brasília, estudar Cinema na UnB e prosseguir sua atividade de cineclubista, cada vez mais político e ligado ao ideário da luta armada.



No Planalto Central, a polícia política permanecia em seu encalço e uma célebre briga pra lá de corporal nos arredores do restaurante do campus, com um suposto agente infiltrado que havia retirado os cartazes de divulgação dos filmes, interrompeu sua vida universitária.


Um amigo mineiro o levou de carro para Ouro Preto, onde ficou escondido por um mês, tempo suficiente para se envolver em um protesto na frente do fórum e novamente ser salvo da prisão por um apelo coletivo. Após mais este fato “subversivo”, no limite máximo da tensão, a alternativa mais segura, sair do país, se consumou através do intercâmbio de uma igreja protestante.


Ficou quatro anos na Suécia e outros quatro anos na França. No Velho Mundo, fez de tudo: trabalhou em escola infantil e em hospício, aprendeu sueco, fez curso de fotografia, encarou a rotina de estivador. Fez filmes, se formou em audiovisual na Nouvelle Sorbonne, ingressou no fotojornalismo, partiu para coberturas de guerra na África, o que lhe vale o título de único correspondente de guerra negro do Brasil.
Retornou em 1980 e se estabeleceu em São Paulo, de onde não saiu mais. Se tornou professor universitário e continuou a produzir filmes, sem deixar a militância pela conscientização dos descendentes de escravizados.

AS MEMÓRIAS VIVAS
O homenageado da primeira Mostra do Cinema Negro de Londrina vive dias de plena nostalgia, após mais de meio de século longe da terra vermelha.


No período, esteve aqui apenas um vez, sem o brilho natural de um reencontro já que enfrentava o luto da morte da mãe.


Desta vez, de alma leve, além de participar de eventos públicos, incluindo a exibição de seis filmes de sua autoria no Museu Histórico e na Vila Cultural Flapt!, o cineasta de 72 anos vai reencontrar velhos amigos e caminhar pelas ruas que o forjaram.


O mestre das luzes e das sombras tenta traduzir em palavras o que o seu cérebro prodigioso revolve.


O antigo e o novo Colégio Estadual Vicente Rijo, onde estudou os anos iniciais e depois o chamado Clássico, o time de basquete do professor Brandão no Country Club.


O endereço onde nasceu e cresceu no coração da cidade. Ficava na rua Brasil, entre as ruas Maranhão e Santa Catarina, onde o pai João Cândido batalhava atrás do balcão de um secos e molhados enquanto Maria do Carmo, a mãe se desdobrava para cuidar dos quatro filhos.


“Lembro que morávamos no fundo, em uma casa de madeira. Depois ajudei o meu pai a erguer um prédio de alvenaria, onde o comércio ficava no térreo e a casa na sobreloja”, conta.


Não escapou do trabalho infantil atrás do balcão e de ouvir as histórias de quem ia em busca de tragos, conversa fiada e companhia, numa cidade ainda cercada pelos cafezais. “Esta terra vermelha deixa marcas inesquecíveis”.


Foi ladrão de centenas de gibis – Fantasma, Jerônimo, Flecha Ligeira numa banca do centro. “Mas acabei devolvendo tudo, sem se livrar de uma bela pisa do meu pai”, garante.


Além da linguagem dos quadrinhos, foi artisticamente educado pelos filmes sem legendas de Akira Kurosawa no Cine Joia (voltado à comunidade japonesa e que tinha ingressos mais baratos que as outras salas).

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Dificilmente perdia um jogo no VGD, sempre fazendo uma infiltração na “zaga” do estádio, achando uma brecha para entrar, para ver o campo, para vibrar com um gol, driblando a realidade de bolsos vazios.


“Ficava esperando o ano inteiro para ganhar um livro no Natal. Coisas do tipo, As mais belas histórias da Escandinávia, As mais belas histórias da Rússia, As mais belas histórias árabes. Eram livros com muitos contos, importantíssimos na minha geração.”

“Esta terra vermelha deixa marcas inesquecíveis”, confessa Ari Cândido Fernandes, ao caminhar pela rua Brasil onde passou sua infância em Londrina
“Esta terra vermelha deixa marcas inesquecíveis”, confessa Ari Cândido Fernandes, ao caminhar pela rua Brasil onde passou sua infância em Londrina | Foto: Gustavo Carneiro


A lembrança da vida familiar e da infância lhe provoca reflexões, especialmente sobre a questão racial numa cidade multiétnica que recebia gente do mundo inteiro em busca da riqueza do café.


“As famílias dos europeus fazem questão de falar sobre sua ascendência. Os negros não. As famílias negras não falam sobre os antepassados. Na verdade, tentamos apagar o negro que temos dentro da gente. Porque não somos o padrão de beleza, o nariz bonito não é o nosso é o do outro. Alisamos os cabelos com ferro quente. Nosso espelho é o outro. Era assim naquela época. Hoje eu quero ser eu mesmo. E cada vez mais. Faço questão de saber de onde vim, de qual povo sou descendente. De qual África estamos falando. A África não é uma coisa só. É diversa. Qual é a sua África? Descubra qual é sua nação. É algo libertador”, defende.

Imagem ilustrativa da imagem Em incursão rara às origens, cineasta desfruta o prazer do reencontro
| Foto: Reprodução

SERVIÇO:
Mostra de Cinema Negro
Narrativas de Ari Fernandes Cândido
"Jardim Beleleu" (2009) e o "O Rito de Ismael Ivo"(2003)
Quando: sábado, 13/5, às 16 horas
Onde:Vila Cultural Flapt! (rua Lino Sachetin, 498)

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