Em exibição, “O Bastardo” é bom drama da Dinamarca
Filme em cartaz no Ouro Verde traz um ex-soldado que decide se dedicar ao cultivo numa condição adversa
PUBLICAÇÃO
domingo, 17 de novembro de 2024
Filme em cartaz no Ouro Verde traz um ex-soldado que decide se dedicar ao cultivo numa condição adversa
Carlos Eduardo Lourenço Jorge/ Especial para a FOLHA

Cultivar batatas em um campo árido, sobre o qual se disse com solene insistência que nada poderá ser plantado, é esperar por um milagre. Será preciso dedicação, cuidados, rigor, erros, lágrimas e cruzar os dedos esperando que aconteça.
“O Bastardo” (Bastarden), em exibição de segunda a quarta-feira (20), no Ouro Verde, inicialmente é como aquela batata: é fria e árida, às vezes parece vários filmes ao mesmo tempo e o ritmo é mais ou menos complicado pela pretendida lentidão. Mas funciona. E muito. E tal como a batata, o drama de época baseado em fatos reais e interpretado soberanamente por Mads ikkelsen resplandece diante às adversidades, presenteando o espectador com um banquete de bom cinema.
Sintetizando: nos idos dos 1.700, Ludwig Kahlen, capitão reformado do exército real dinamarquês (Mikkelsen), chega às terras virgens e desprezadas da região agreste da Jutlândia, que o rei do país escandinavo pretende um dia sejam produtivas. Ele quer trabalhar. E obter resultados. Mas forças poderosas – em especial a natureza adversa e um vizinho vilão em pele de aristocrata – vão atrapalhar sua vida e ameaçar seu sonho.
A primeira abordagem ao filme pode ser preguiçosa. E é normal. A adaptação da vida real de um soldado que decidiu se dedicar ao cultivo de batatas na península no fim do mundo da Jutlândia parece receita perfeita para tirar uma soneca. Mas o filme não permite isso graças a um roteiro que vai sendo bem criado aos poucos, pondo de pé um personagem indecifrável, duro, acostumado ao sofrimento, que sabe se mover como ninguém nas adversidades.

O drama se passa em meados do século XVIII, mas seu discurso de classe pode ser perfeitamente extrapolado para os dias atuais, tendo mais em comum com o moderno “devore os ricos” do que com o cinema de porcelana artistocrática. Ludvig luta, chora, sua e sofre para realizar seu sonho diante das letais extravagâncias de um vilão com absurdos planejamentos sádicos para seu próprio deleite.
“O Bastardo”, à primeira vista, é glacial e distante, assim como seu protagonista. Mas como este, tem sempre a capacidade de surpreender. Os personagens tridimensionais e perfeitamente definidos elevam cada uma das cenas, às quais se soma uma direção calculadamente lenta e um roteiro comedido que se recusa a trabalhar com golpes de efeito, mas sim aumentando progressivamente o ressentimento e o desejo de retaliação, que o tornam particularmente satisfatório.
O filme dirigido por Nikolaj Arcel é drama de época, mas também uma história de amor, um retrato histórico, uma luta de classes moderna, um épico de reis e súditos, um noir vingativo e o retrato de um personagem cujas convicções se esgarçam com o passar dos dias. E tudo isso envolto em um clássico confronto épico entre o bem e o mal, da ingenuidade contra a perversidade, do poderoso contra os vassalos, da batata contra a irracionalidade. Poderia ser um imbroglio indigesto, mas acaba se tornando uma obra única. Sua fotografia intrigante, suas cores ocres e um roteiro que mede na medida o sutil aumento contínuo da velocidade no acelerador, fazem do filme uma raridade quase de outra época, tão fantástico nas intenções quanto no resultado.
E mesmo sem precisar, o filme ainda recebe o impulso extra do natural talento de Mads Mikkelsen, que preenche a tela e controla cada minuto do filme com o olhar penetrante de quem quer continuar lutando, apesar de seu corpo lhe pedir para desistir.
É um dos melhores atores do nosso tempo, e sem ele provavelmente “O Bastardo” nunca teria adquirido o tom perfeito e necessário para funcionar.
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