O prolífico e generalista diretor Matteo Garrone (“Gomorra”, 2008) apresentou ano passado no Festival de Veneza um drama alucinante e muito atual, “Io Capitano”, que só não ganhou o Leão de Ouro de melhor filme porque teve pela frente “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos. Mas o italiano Garrone saiu-se muito bem da mostra veneziana, com o Leão de Prata de melhor diretor e o Premio Marcello Mastroianni para ator estreante, o jovem senegalês Seydou Sarr. O filme, que estará em exibição em Londrina por mais uma semana (agora no Ouro Verde, a partir de segunda, 18) vai direto na veia do sonho daqueles migrantes africanos à procura de dias melhores na Europa. O filme de Garrone conta parte dessa história, mostrando o processo da migração ilegal do ponto de vista de dois adolescentes senegaleses, Seydou/Seydou Starr e Moussa/Moustapha Fall, que nunca tinham visto uma câmera. Aliás, o elenco de não profissionais é precioso.

Premiado também em San Sebastián e indicado ao Globo de Ouro e ao Oscar, “Io Capitano” reúne os elementos cinematográficos necessários para esse tipo de realização. Isso inclui tanto aqueles que pertencem à área técnica – como a fotografia impecável ou uma trilha sonora capaz de potencializar qualquer emoção – quanto à narrativa, contando uma história pensada que busca estimular certas culpas coletivas e uma tendência a resolvê-las de forma favorável. O que na vida real geralmente não acontece.

Também co-roteirizado por Garrone, o filme aborda a questão das migrações em que milhões de pessoas saem das regiões mais pobres do mundo (as ex-colônias) em busca do bem-estar dos mais ricos. O protagonista é um adolescente senegalês que, em cumplicidade com um primo da mesma idade, decide sair secretamente de casa na esperança de encontrar vida melhor na Itália e no desejo de ajudar a mãe na criação dos irmãos mais novos.

Boa parte do filme tem cenas que remetem ao mais cru telejornalismo
Boa parte do filme tem cenas que remetem ao mais cru telejornalismo | Foto: Divulgação

UMA ODISSEIA

Garrone recorre ao truque de inverter os moldes homéricos da “Odisséia”, já que o objetivo desta viagem não é voltar para casa. Pelo contrário, é uma história de iniciação em que o protagonista deixa a segurança da família (ainda que pobre) para ir à descoberta do mundo. E embora ambas as histórias tenham a aventura como denominador comum, há uma ressalva. Enquanto a viagem de Ulisses é marcada pelo fabuloso e os perigos que enfrenta pertencem a um universo poético, a jornada de Seydou é muito mais prosaica e suas dificuldades obedecem ao mais estrito realismo (embora Garrone introduza com destemor e ternura um toque de magia nesse realismo). Toda uma tradição dentro do cinema italiano. E mais recentemente combinada com a contemporaneidade do olho do documentarista – não poucos momentos no filme parecem saídos do mais cru telejornalismo.

“Eu, Capitao” às vezes abusa de recursos formais como encadeamentos ou certa explicitude ao encenar determinadas situações-limite. Mas tem a seu favor a franqueza do seu personagem principal, interpretado pelo estreante Seydou Sarr, para quem a viagem não representa a descoberta de um mundo de maravilhas, mas muitas vezes uma descida ao inferno. Nesse sentido, pode-se pensar que o modelo literário da “Divina Comédia”, outra história que utiliza o espelho homérico, seja mais adequado à ocasião.

Porém, apesar das situações extremas que o filme impõe ao jovem protagonista (e ao espectador através dele), o roteiro nunca cai na armadilha do miserabilismo de deixá-lo sem saída. Um gesto nobre que consegue atenuar a tragédia implícita na história. Não para adoçar, mas como tentativa de captar a ambiguidade de uma realidade que pode ser avassaladora ou esperançosa, dependendo do extremo da escala social a partir da qual é vista.

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