Em cartaz em Londrina, 'Ainda Estou Aqui' é memória e advertência
Filme de Walter Salles aborda os traumas da ditadura militar quando pessoas desapareciam ou eram retiradas de suas casas para nunca mais voltar
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 07 de novembro de 2024
Filme de Walter Salles aborda os traumas da ditadura militar quando pessoas desapareciam ou eram retiradas de suas casas para nunca mais voltar
Carlos Eduardo Lourenço Jorge/ Especial para a FOLHA
Família é vínculo de sangue, e não importa como conduzimos nossas vidas, sempre teremos uma conexão, uma empatia, um amor especial por nossos pais, irmãos, parentes. É por isso que os dramas e as tragédias dos desaparecidos nos tempos de chumbo da América do Sul dos anos 1970, com as juntas militares que governaram o Chile, a Argentina e o Brasil, ainda trazem ecos ressonantes e tão particularmente aterrorizantes. Pessoas consideradas dissidentes políticos foram retiradas de suas casas, oficialmente apenas para interrogatórios, e suas famílias nunca mais voltaram a vê-las, deixando-as num estado de tortura psicológica que teria para sempre um impacto devastador em suas vidas.
Quando leu o livro de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme, o diretor Walter Salles, dono de reduzida (uma dúzia de títulos) mas muito consistente filmografia – os destaques ficam por conta de “Central do Brasil” e “Diários de Motocicleta” –, sentiu-se particularmente tocado pela história da família Paiva, e decidiu que teria que filmá-la. O produto resultante é “Ainda Estou Aqui”, em exibição em Londrina depois de uma passagem premiada nos festivais de Veneza e Toronto. O respeito que demonstra por aquele núcleo familiar prova que ele era a pessoa certa para realizar este filme – Salles conviveu com eles em sua adolescência.
O argumento começa por contar a história dos Paivas no fatídico verão de 1971, quando o Brasil estava sob os coturnos de uma ditadura militar brutal e assustadora. Rubens Paiva (Selton Mello), o homem da casa, é engenheiro civil, mas também ex-deputado pelo Partido Trabalhista Brasileiro. Paiva já vivia exilado há algum tempo, mas decidiu voltar ao Brasil, transferindo a família de São Paulo para o Rio de Janeiro.
Apesar de ter sido forçado a abandonar a carreira política, Rubens nunca deixou de se interessar pela política do país e de ajudar ativamente os exilados políticos a regressarem aos seus países. Paiva tem uma esposa dedicada, Eunice (Fernanda Torres), e cinco filhos. A filha mais velha já atingiu a maioridade, e o casal reflete sobre mandá-la para Londres por algum tempo. Eles até ponderam se deveriam alcançá-la na Inglaterra, porque estes são tempos turbulentos para o Brasil: um dos grupos de resistência à ditadura acaba de sequestrar o embaixador suíço para forçar negociações sobre a libertação de presos políticos. No Rio e arredores cresce a repressão policial e o clima político está esquentando.
INTERROGATÓRIO SEM VOLTA
Os Paivas tentam levar vida normal, e Salles é bastante meticuloso ao descrever essa família como um grupo de pessoas saudáveis e unidas: brincam na praia, gostam de estar na companhia um do outro, têm suas próprias divergências, mas nada diferente de qualquer outra família. A própria casa vira personagem, com personalidade própria: é uma prova do cuidado que o diretor dedica à representação da casa Paiva. Ele quer contar a história deles, sem nenhuma intrusão invasiva do próprio cineasta.
Claro que, sendo a personagem que é, a casa é também lugar de encontros políticos para Rubens. Além de ex-deputado, ainda é cidadão, e realmente não se importa se isso vai atrair a atenção da polícia, ele ainda acredita em sua causa. Infelizmente, não é nenhuma surpresa quando três homens associados ao exército aparecem em sua casa.
Eles precisam levar Rubens a um centro de interrogatório para fazer algumas perguntas. A eficácia surpreendente desta cena reside na sua natureza prosaica: não é sensacionalista, é apresentada como inevitável, e até o comportamento de Rubens faz sentido aqui. Ele sabe o que está para acontecer e tenta tranquilizar a família da melhor maneira possível. É nesse momento que o filme passa a olhar mais de perto para Eunice. O que ela vai fazer agora?
O DRAMA DE EUNICE
Ela espera que o marido volte logo, mas no fundo ela sabe que isso não vai acontecer. Na verdade, fica pior. Ela e uma de suas filhas, Eliana, também são levadas e para um centro de interrogatório: a garota é libertada após 24 horas, enquanto Eunice fica detida por 12 longos dias, onde a única forma de saber o tempo é fazer marcas na parede. Embora isso possa parecer melodramático, a abordagem de Salles é tudo menos isso: ele é metódico e bastante estoico, assim como sua protagonista. Ele quer evitar as armadilhas da manipulação emocional e conta a história com um tom delicado e respeitoso.
O retrato que Salles faz de Eunice é o de uma matriarca cujo interesse principal é manter a família unida. Mesmo depois de ter sido libertada e de testemunhar os horrores das torturas sofridas pelos prisioneiros, ela dá prioridade ao bem-estar de sua família, ao mesmo tempo que se torna uma ativista dos direitos civis e políticos. Ela jamais desiste do marido, mas a beleza da personagem em particular é que ela não se deixa consumir por essa busca: ela está perfeitamente calibrada, e muito do mérito se deve à atriz Fernanda Torres. Ela se torna Eunice Paiva, encarna todas as suas emoções com extraordinária eficácia e ao mesmo tempo mantém certo estoicismo que torna a interpretação especial. Com ela, Eunice é uma personagem não marcada pelo desespero, mas sim pela força; reinventa-se não porque tem de continuar mas sim porque quer continuar, mantendo sempre a dignidade ao longo de toda a provação. São estes os traços que lhe conferem a personalidade multifacetada: é uma cidadã preocupada, mãe e esposa; um retrato tridimensional plenamente realizado, uma atuação de gala.
A principal qualidade de “Ainda Estou Aqui” é que conta uma história muito sensível de forma informativa e respeitosa: nunca é manipulador, nem é indulgente. E apesar do cenário do início da década de 1970, ditaduras e tiranos não são coisas do passado, o que faz de “Ainda Estou Aqui” obra muito mais que oportuna. E no faz lembrar por que razão a liberdade nunca deve ser considerada garantida, e faz isto sem cair em armadilhas retóricas. Por outro lado, até o momento os cinco policiais militares acusados do assassinato de Paiva ainda não foram processados.
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