Elza Soares em disco gravado ao vivo
Elza Soares em disco gravado ao vivo | Foto: Divulgação

Rio de Janeiro - Em seu apartamento quase sem móveis, em São Conrado, Elza Soares, morta nesta quinta (20), me olhava sem acreditar enquanto eu lhe narrava um episódio acontecido 30 anos antes, num quarto fechado, em sua casa na ilha do Governador, envolvendo apenas ela própria e seu marido Garrincha, e sobre o qual ela nunca falara com ninguém.

Quando terminei, sua resistência explodiu em choro - lágrimas grossas escorreram entre seus cílios postiços. E só então ela se interessou mais pelo profissional que a entrevistava para um livro que se chamaria "Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha".

Isso foi em 1994. Um ano depois de iniciado o trabalho de apuração do livro, eu decidira que estava na hora de falar com Elza. A experiência me ensinara que, quanto mais importante a fonte de informações numa biografia, mais ela deveria ser deixada para a frente - para que o biógrafo tivesse tempo de aprender o máximo sobre ela e fazer com que a conversa entre eles se desse num grau maior de profundidade. Servia também para que a fonte percebesse que o biógrafo seria difícil de tapear.

O episódio referia-se a uma bactéria exótica que Garrincha trouxera de uma de suas viagens com o Botafogo, nas quais não dispensava os passeios noturnos. Como eu poderia saber daquilo? Não precisei revelar-lhe minhas fontes, nem faria isso. O importante era que soubesse que eu sabia. Mas a explosão de choro serviu para quebrar o gelo. Pelo ano e meio seguinte, Elza se revelaria uma fonte inestimável, sem censura, sem meias-tintas, sobre si própria e sobre Garrincha.

Elza tinha horror a Nilton Santos, companheiro e mentor de Garrincha no Botafogo. Em fins de 1962, quando Garrincha abandonou a família para viver com ela e a imprensa passou a atacá-la como "destruidora de lares", Elza soube que Nilton Santos o aconselhara: "Mané, volte para a comadre Nair. Não troque sua mulher por uma...". Ela nunca lhe perdoou o insulto. O resultado é que, nos 15 anos em que Elza e Garrincha viveram juntos, Nilton Santos nunca foi admitido nas várias casas em que moraram - ele e Garrincha só podiam se ver no clube ou na rua.

Durante mais de um ano, fiz pelo menos 15 entrevistas longas com Elza e nos falamos dezenas de vezes por telefone. Ela não era, então, uma artista muito ocupada - ao contrário, raramente era chamada a cantar e vivia com problemas financeiros.

O estigma de que tinha sido a "destruidora de Garrincha" ainda se mantinha. Sei disso porque eu era interpelado na rua por pessoas que sabiam que eu estava trabalhando numa biografia do craque: "Foi ela quem levou o Garrincha a beber. Você vai escrever isso?", diziam. Como explicar que Garrincha sempre bebera, muito antes de conhecê-la, e que, sem Elza, ele teria morrido ainda mais cedo? E que, se alguém teve prejuízo profissional com aquela relação, fora ela --porque Elza já era a super-Elza Soares quando o conheceu, e Garrincha não sabia, mas já começara a deixar de ser Garrincha.

PELÉ?

Outra lenda era a de que Elza "só pegou o Garrincha [na Copa do Mundo no Chile em 1962] porque o Pelé não quis nada com ela". Primeiro, Elza e Garrincha já estavam informalmente juntos seis meses antes daquela Copa.

Segundo, bastava conhecer Elza para saber que ela nunca se interessaria por Pelé ou por qualquer homem como ele. Pelé era rico e poderoso, era o "Rei". E Elza só gostava de homens frágeis, que ela pudesse proteger, acarinhar, exercer o papel de mãe. Seu namorado anterior a Garrincha tinha sido Milton Banana, o homem que inventara a bateria na bossa nova e continuava pobre --ninguém mais frágil e desprotegido do que Milton Banana.

O Garrincha por quem Elza se apaixonou, já campeão do mundo na Suécia e às vésperas do bi, era um homem que usava camisas rasgadas, com botões diferentes, cuecas puídas e sapato furado - porque sua mulher não ligava para cuidar dele. Garrincha a levou à sua casa em Pau Grande, e Elza ficou revoltada com a imundície e com a quantidade de gente que o explorava.

Levou-o para sua casa na ilha, despiu-o, lavou-lhe os pés e os beijou. Depois queimou seus farrapos e substituiu-os por calças e camisas compradas na Casa Alberto. Todos os homens que Elza teve depois de Garrincha seguiram esse padrão.

Quando eu a visitava, Elza não tinha um único de seus discos, nem uma foto, nem uma reportagem de jornal a seu respeito. Vivia se mudando - creio que para evitar despejos. E, sempre que eu chegava, ela estava sofrendo de alguma coisa.

Certa vez, andando descalça pela casa, dera uma topada numa perna de mesa e quebrara o dedinho do pé. Em outra, jogara água oxigenada no olho pensando que era colírio e ficara monstruosamente inchada. E, ainda em outra, estava se desfazendo pelo nariz e suando, com uma mistura de resfriado, febre, coriza, sinusite e enxaqueca.

E o pior é que tinha show àquela noite, com o conjunto Galo Preto, no Jazzmania, em Ipanema. Show que ela teria de fazer, porque estava dura. Desejei-lhe as melhoras. À noite, fui ao show. A transformação era impressionante. Não era possível que aquela mulher no palco, cantando como uma deusa e sambando como um demônio, fosse a enferma que eu vira horas antes. Mas era. Enlouqueceu a platéia. Ao fim do show, fui a seu camarim --e lá estava Elza, de roupão felpudo, com um lenço ensopado na mão, com 39 de febre e se derretendo de novo. Como se explicava?

Simples. Uma era a mulher, frágil, mortal, que ficava doente. A outra era a artista, indômita, invencível, que ninguém destruiria.